sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Manualdo e o teste das baratas

A jovem Maria Cariciosa entra pela pequena casa em rajadas rápidas, como o vento que se antecipa a tempestade. Num assopro passa do pórtico de entrada à cozinha do fogo a lenha. Cortinas de pano esvoaçam e se abrem, janelas se batem naquele entardecer mormacento. As paredes sem reboco gemem de desconcerto, estão desguarnecidas na sua feiúra, ressentidas pela luz da menina e sua beleza anatomista. Ela não é destas paredes, mas vai morrer aqui. O ar venta todo desconjuntado na sua passagem. O assoalho de madeira estremece e geme. As galinhas a engordar no porão da casa se agitam em cocorocós. A mãe, Maria Memória, recolhe os olhos dos afazeres domésticos. Quefazeres dignos de toda mulher que preze o seu lar. Ainda não está gordinha, mas já vive época de útero cheio. É o sexto vivo. É sempre o primeiro a apontar o brotamento. Uns poucos dias atrás, se percebeu com embaraço de barriga. Justo quando as regras teimaram em não sangrar. Mas é noticiário de poucos dias, vai deixar passar mais um tempo da semeadura do Ogum. Está surpresa que ele não tenha feito nenhum comentário de curiosidade, com os gêmeos foi o primeiro a apontar o brotamento. Logo, se vão movimentar todos, na expectativa da colheita do plantado. Mais uma boca, mais um filho do Ogum. Passa as mãos sobre o ventre livre, sente crescendo a beleza escura-como-a-noite da criança, com se fosse uma encantaria. Tem na certeza que será outra Maria.

Olha para aquela que educa com carinho, renúncia e devotamento, ela se chega em redemoinhos. Pensa em como está linda, na sua cor de negra e carapinha dura, desenrolada em dezenas de finas tranças, corridinhas, enfeitadas com miçangas. Os olhos amendoados são duros de enfrentar. Jura que ela está fora de lugar. É uma boa menina, não aprendeu as maldades que a vida tem. Maria Memória pensa no vestido branco preparado para Maria Cariciosa, em moldes de casamento.

A menina ainda solteira de direito, quase casada pelos fatos, lança olhar para a sala da televisão em preto e branco, mas, também, sala do jantar, visita ou quarto dos irmãos, vê o paizão da mãe, agarrado nos gêmeos. Um pai biônico. Boné de couro enfiado na cabeça, ferroviário, na cor preta, lembrança dos tempos de ferrovia. Barba branca falhada, por fazer. Não se lembra de ver o pai Ogum sem o boné. Nem percebe algum aforçuramento de empolgação. Começa a duvidar que esse casamento arrede das intenções. Aqui na vila ou no beco, tudo é apenas vontade. Ainda vivem sem esgoto e a energia continua a chegar num único poste. A força sai num emaranhado de fios desencontrados. O beco do pau dos fios da luz. Fincado bem na entrada. A cada novo morador mais fios nascem naquele emaranhado. E, a cada dia, as chances de uma desgraça são maiores. Bombeiro ou ambulância não entra no beco, só derrubando o pau cravado no chão. A água não chegou em todas as casas, não existem milagres. É preciso fazer fila de espera na bica pública com as latas de recolher água nas mãos.

Pensam no barraco que precisa ser construído. Nada dessas coisas de madeira e lona. Tudo bem feitinho pra não ter rato e barata e sapo. Têm nojo de sapo, odeiam ratos, mas da barata fogem como condenadas. Não basta afugentá-las, é preciso exterminar. Entram em pânico. Assustam todos na volta. Até quem não tem medo se assusta com a algazarra, a desordem e a bagunça. Correm para longe. Elas jamais se atrevem a enfrentar o feitiço das baratas. Saem em retirada e aos gritos, acho que para afastar o pesadelo ou assustar os insetos se deixam ficar com estremecimentos pelo corpo.

Em uma destas noites de muito calor, depois do banheiro construído e os canos dos esgotos chegarem ao valo das águas escuras, Manualdo estava em visita de reconhecimento. Ogum não chegara do trabalho. Naquele sábado arrumara hora extra. Todos estavam constrangidos, evitavam dizer alguma bobagem e estragar a primeira visita de consideração. Cariciosa foi a primeira a quebrar o gelo do acontecimento, correu aos gritos pela casa

barata, uma barata

Era a maldição da bela Moliehi que se cumpria.
Manualdo, que só estava em visita de primeiros cumprimentos com a família da menina, se armou com o tênis e esmagou a nojenta no chão. Ergueu o corpo e com pose de macho protetor gritou

outra barata, mais uma e outra

Correu atrás das baratas. Os bichos procuravam as frestas e os buracos no assoalho. As mulheres procuravam as cadeiras e as mesas. Umas fugiam das outras. E o Manualdo seguia esmagando. Achatou uma... depois outra e mais outra. Um rastro de Moliehi com tripas esmagadas

onde

ali, ali e ali

ai, ai, ai, meu Deus

outra, tem outra

O jovem guerreiro esmagava uma a uma aquelas que tentavam entrar. Elas se vinham por baixo da porta. Paredes e chão estavam repletos de corpos esmagados pelo cassete de Manualdo. O rapaz, depois de perceber que se tratava de uma invasão, tirou o outro tênis e armado atirava como uma metralhadora, com as duas mãos. Quando parte do exército invasor pareceu recuar, o artilheiro abriu a porta e seguiu a trilha das fujonas. Retornavam para a escuridão do esgoto da casa. O rapaz tomou uma decisão rápida

Cariciosa, me alcança o querosene

cuidado, meu amor

Levantou a tampa da caixa do esgoto e os gritos de pavor tomaram conta de todos, eram dezenas, centenas, milhares de baratas se reunindo para o ataque final

meu Deus

vamos fugir

chamem mais ajuda

Manualdo jogou o querosene no buraco e riscou um fósforo. O buraco se desfez em chamas, sob o clarão da fornalha. Foram torradas. Naquela noite, Manualdo conquistou o direito de entrar para a família. O preço pago é continuar a sentir as baratas descascadas rastejando por suas pernas, mas de qualquer modo dos males o menor. A Maria Memória saiu com o rapaz pelo braço a apresentar pelo beco

esse é o Manualdo, rapaz de coragem e desembaraço

Maromar

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