terça-feira, 23 de novembro de 2010

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Um visconde partido ao meio, um alguém sem razão

Chapéu do Sol

O Visconde Partido ao Meio, recomendação do blogue


Lado. Todo mundo deveria ter um. Ou ao menos deveria defendê-lo, deixá-lo à mostra. Exímio defensor das ideias que sou, também tenho meu lado, por óbvio. E ele não é do bem ou do mal; ou bom ou ruim. É meu, simplesmente. O livro O Visconde Partido ao Meio, do escritor Italo Calvino, trata de questão semelhante. Não igual, convém ressaltar.

O visconde Medardo di Terralba é um homem comum, personagem principal e fictício da anteriormente citada obra. Mesmo inexperiente em batalhas, o nobre cavaleiro genovês opta por ajudar a cristandade na guerra contra os turcos que se segue. Em “temerária arremetida contra a ímpia artilharia de turcos”, acaba por ser destroçado depois de levar um tiro de canhão à queima roupa no peito. Como consequência, fica com o corpo partido em dois. E assim sobrevive.

O lado direito, o que menos se danificou, segue de volta rumo ao castelo em Terralba. Medardo, entretanto, está meio tudo. Tem meia boca, meio nariz, meia testa. E apenas um braço e uma perna. No limite do seu corpo, sua pele é esticada a fim de proteger suas veias do mundo exterior. A fala é mansa – seria impossível comprendê-lo caso resolvesse falar mais ligeiro. Não por menos, seu sorriso é assustador, triangular.

A parte direita de Medardo acumula todas as maldades detidas na sua integralidade. Trajando uma capa negra com capuz, que cobre seu meio corpo e o faz parecer um grande sombreado, passa a distribuir – no alto do seu poder de visconde – ordens de matança e extermínio por todos os cantos. Medardo di Terralba também galopeava com seu cavalo negro e magro pelas florestas e bosques, sempre a fazer maldades. Certa vez, colheu dezenas de cogumelos, entre comestíveis e venenosos. Ao avistar seu sobrinho, não pensou duas vezes e deu-lhe os venenosos, dizendo para fritá-los. Não fosse uma senhora, seria morte na certa do menino.

Medardo era temido e poderoso. Com a única mão, segurava uma bengala para se locomover. Não perdoava dívidas, não permitia falhas. Não possuía compaixão. Apesar, não desdenhava todos. Tratava alguns, aqueles que o bajulavam ou que poderiam ser úteis, com certa cordialidade. Passou a ser odiado, e chegou a confessar que tinha receio ao dormir, com medo que seus guardas o assassinassem durante o sono.

Em contraponto, anos e anos após a chegada da parte direita do visconde, surge a parte esquerda. Fisicamente muito semelhante ao outro, obviamente. Usava meias listradas em branco e azul, e sua capa era um pouco mais abarrotada. Ao invés do cavalo, peregrinava somente com a ajuda da bengala (mais tarde viria a adquirir uma mula). Caminhava. Durante anos visitou vilarejos e distribuiu benfeitorias pelos lugares que percorreu. Era a parte boa do visconde.

A mesma feição horrenda, o mesmo sorriso triangular. “Bom”, como foi apelidado, trazia todos os resquícios da bondade humana, porém. Se desfez da própria bengala em prol do próximo, por exemplo. Mas no decorrer da estadia começou a ser rechaçado. Se o outro, o “Mesquinho”, era bandido, Bom era um trouxa. Acabava por querer beneficiar todos, mas o fazia em detrimento próprio. Não se dava valor. E isso começou a irritar os moradores de Terralba. Calvino, mestre, sintetizou:”nossos sentimentos se tornavam incolores e obtusos, pois nos sentíamos como perdidos entre maldades e virtudes igualmente desumanas”.


Mesquinho e Bom fazem parte de um único alguém. Completam-se. São exemplos claros e cômicos que anseiam a reflexão sobre os valores da vida humana e do mundo vagabundo. Medardo di Terralba, completo, é um homem inteiro. Nem bom, nem ruim – apenas inteiro. Assim como a ideia de lado que mencionei no primeiro parágrafo desse texto. Medardo di Terralba tinha sapiência. Quem balanceia os seus lados e impõe seus valores acaba por obter êxito. Por mais estúpida que seja a direita, menos mal que sempre existirá uma esquerda.

Ivan Marrom

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