Cordeiros e Altar
Mauro Marques
As histórias nem começam e nem terminam agora, elas se cruzam o tempo todo, pervertidamente, mas nunca inadvertidamente. Somos carnívoros e rasgamos com os dentes da indiferença e soberba a alma dos cordeiros colocados sobre o nosso altar. Escolha você sobre qual altar devem ser depositados os cordeiros em sua honra e glória. Os cordeiros precisam ter paciência que a imolação é deles, mas a decisão é do senhor do altar.
A minha história de cordeiro pode ter início em qualquer lugar, mas escolho uma manhã de domingo, acordo com leves e suaves dores na barriga, um desconforto. Olho para os lados e não vem ninguém, o domingo vai passar e as dores também.
Os dias aguentam e os desconfortos aumentam.
Ouço conselhos como um surdo e sigo em frente. Ainda não me descobri um cordeiro sendo preparado para o altar. Por enquanto tenho que atender os cordeiros do meu altar, faço mais devagar, tudo está mais lento. Meus alunos e alunas seguem meus caminhos.
Os dias continuam atravessando e as dores subtraindo minha paciência.
Tenho o primeiro gesto de medo e vou ao médico. Afinal, meus intestinos paravam e a barriga crescia. Como podia crescer se estava parada? O médico é velhinho, daquele tempo em que a medicina apertava a mão, os dois sentavam para prosear, e lá de vez em quando a medicina se atrevia em perguntar alguma coisa, geralmente, porque gostava de ouvir atentamente histórias e se aborrecia quando não compreendia o enredo. Depois pedia ao contador para deitar, se punha a escutar os ruídos que não foram ouvidos na conversa, apalpava as carnes procurando os sinais que ficaram escondidos no silêncio. A história se prolongava até o desfecho
(Senhor Mauro, deve ser uma infecção intestinal, mas me preocupa essa dor no lado direito.) (O que a gente faz?) (Um hemograma e quero o resultado até o final do dia.)
Não deu alteração no hemograma.
Infecção intestinal. A prescrição dos laxantes foi seguida à risca.
Outra semana tem início e os cordeiros esperando. As dores diminuíram, mas o altar seguia pronto, esperando. Ninguém precisa saber que é um cordeiro, na hora do sacrifício o altar será servido e você estará lá. As dores retornaram mais intensas. Depois o cordeiro procura ajuda.
O telefone toca, é meu pai
(Alô) ((Mauro, a tua mãe não está bem...) (To indo.)
A minha jovem mãe pedia ajuda
(O que foi mãe?) (A minha mão perdeu a memória.) (Memória?) (É... ela ta esquecida.)
Levo minha mãe ao hospital de pronto-socorro da minha cidade. Ela é atendida imediatamente, mas tenho tempo de lançar aos ventos meu medo
(Acho que é uma isquemia.)
Minhas dores aumentam. Fico fora daquelas paredes brancas e passo a tarde caminhando de um lado a outro. Acho uma janela por onde vejo a jovem senhora. Ela faz exames, responde perguntas, mas sorrindo. Minha alma relaxa enquanto meus dentes cerram de dor. Penso em entrar e gritar que o paciente sou eu. Bobagem, apenas a recebo de volta e a levo para casa. Não tinha nada, a mão tinha ficado esquecida mesmo, mas já sabia que era a esquerda, não adiantava querer ser da direita. Com a mão reconhecida e a mãe tranquila fui para casa. O altar continuava me esperando. A dor também, ela confiava em mim, mas agora com calafrios pedi que me levassem ao hospital de pronto-socorro. Esperava que estivessem realmente de prontidão. No caminho queria gritar desesperado
(Voa canarinho, voa!)
Mas como incentivar seu filho a correr? Fiquei quieto, mas durante o caminho, num descuido do carro parado no trânsito, abri a porta e saí
(Mauro, volta aqui!)
Não tinha tempo para explicar, apenas cai de quatro, assim mesmo, auau auau, vomitando.
Chegamos ao HPS. Fui atendido depois de uma leve escaramuça.
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