Brasil e Argentina, relações
Escrevinhador
Por Felipe Carrilho
Quando as seleções de Brasil e Argentina duelam, parte do imaginário dos países também entra em campo. O clássico desperta sentimentos contraditórios.
Para além da rivalidade estimulada pelos meios de comunicação, que às vezes resvala no ódio, existe uma admiração discreta e mútua. É verdade que a nossa mídia conduz essa relação de maneira mais irresponsável do que a dos hermanos. Comerciais de refrigerante ou cerveja, por exemplo, reduzem a disputa à caricatura. Mas, no íntimo, cada brasileiro reconhece o valor da escola de futebol adversária.
Reconhece e teme. Esse respeito sem dúvida se deve aos feitos da seleção e dos clubes argentinos. E também a outros fatores. Admiramos e invejamos a cultura letrada fortemente arraigada no seu povo. As feições “europeias” de Buenos Aires e seus cidadãos conscientes dessa sua condição causam impacto nos turistas brasileiros. Talvez em reação a essas características, a Argentina tenha produzido no futebol um herói anárquico como Maradona.
Reconhecemos também os méritos da maneira de torcer dos argentinos. O modo dramático como se entregam à paixão futebolística comove os brasileiros. Não é à toa que parte das nossas torcidas organizadas imita os cantos e as coreografias dos nossos vizinhos. Recentemente, tem crescido o número de brasileiros que dizem se identificar mais com a seleção alviceleste do que com a nossa.
Do outro lado da fronteira, os hermanos não se preocupam tanto em camuflar esses sentimentos. “Jogo bonito” é como se referem ao nosso modo de atuar, baseado em troca de passes envolventes e dribles inesperados. Eles também demonstram uma maior intimidade com outros produtos da nossa cultura popular, como a música.
Talvez o lado mais nefasto da rivalidade, o racismo, guarde em suas profundezas um recalque. “Macaquito”, além de representar um xingamento intolerável, revela o trauma de pertencer a uma nação que não quis se debruçar sobre a possibilidade de uma composição social plural do ponto de vista étnico.
O futebol mulato, o futebol malandro, apregoado por Gilberto Freyre, foi disseminado durante décadas e se tornou um traço central da nossa identidade futebolística. Quando a Seleção apresenta em campo seus jogadores de constituições físicas mais variadas, se não desfila a democracia racial de chuteiras, ao menos mostra que os negros puderam se destacar na sociedade brasileira, mesmo que a duras penas e em poucos setores. Possivelmente por causa disso tenhamos produzido um ícone tão institucional como o Rei Pelé.
Sobre a partida de sábado, a Seleção Brasileira, formada basicamente por jovens em idade olímpica, atuou muito bem contra a Argentina. Pelo menos o seu ataque. Neymar não foi brilhante, mas não se pode dizer que jogou mal. Oscar mostrou que tem futebol e estrutura emocional para suportar o peso simbólico da camisa amarela.
De nada adiantou impor certo domínio no jogo diante de uma Argentina que tinha Messi em campo. O camisa 10 acabou com a partida, fez três golaços. Não existe hoje algo mais inadequado na imprensa esportiva brasileira do que comparar Neymar a Messi. A lição já deveria ter sido aprendida em dezembro do ano passado, quando o Santos levou um baile de bola do Barcelona. Mas não foi.
Messi então tratou de reiterar. Além da diferença de idade, de experiência, salta aos olhos a de estilo. Messi está no auge do seu futebol, desenvolveu um modo de jogar que está muito claro e polido. Para forçar a comparação com a música e ao mesmo tempo fugir do chavão samba versus tango, Messi jogando é como João Gilberto cantando ao violão, jamais desafina ou trasteja.
Mostra uma concepção de jogo plenamente realizada e precisa. Seus dribles quase nunca são mal-executados eu exigem um improviso reparador. Mesmo quando inventa, parece ter ensaiado antes. O segundo gol que Messi marcou ilustra bem isso. Ele não precisou balançar o corpo para um lado e sair para o outro, como é característico no nosso futebol. Messi deu um toque para a esquerda com força e ângulo tais que o goleiro não poderia jamais alcançá-lo. E ainda finalizou pelo alto para que nenhum zagueiro conseguisse interceptar a bola de carrinho.
Neymar é um ótimo jogador. Ensaia para se tornar um Baden Powell dos campos. É um virtuose da melhor tradição de nossos dribladores e também impressiona por sua competência na finalização. Mas quando se depara com Messi, mostra que falta muito para se tornar um craque.
É possível que as comparações com o fenômeno argentino tenham inibido Neymar. Além de impertinentes, são enfadonhas. O maior clássico sul-americano e seus craques são assunto mais interessante do que o discurso jornalístico muitas vezes deixa perceber.
Felipe Dias Carrilho é historiador e autor do livro “Futebol, uma janela para o Brasil – As relações entre o futebol e a sociedade brasileira”
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