Complexidade do julgamento
Lewandovski sob pressão
Escrevinhador
Por Paulo Moreira Leite, no Vamos Combinar
Quem pensava que o julgamento do mensalão seria um pelotão de fuzilamento já deve estar com as barbas de molho depois do voto de Ricardo Lewandovski.
Lewandovski sob pressão
Escrevinhador
Por Paulo Moreira Leite, no Vamos Combinar
Quem pensava que o julgamento do mensalão seria um pelotão de fuzilamento já deve estar com as barbas de molho depois do voto de Ricardo Lewandovski.
Você pode pensar o que quiser de Lewandovski. Pode até lembrar que dona Marisa Lula da Silva teve grande influência em sua nomeação para o STF. E pode até achar que isso desqualifica sua escolha e seus votos.
Mas Lewandovski deu um voto claro e bem pensado, com argumentos e com fatos relevantes. Os especialistas dizem isso. Não eu.
Na véspera, ele condenou Henrique Pizzolato, Marcos Valério e outros envolvidos em desvio de verbas do Visanet. Parecia que ontem iria repetir a dose, condenando João Paulo Cunha, que era presidente da Câmara de Deputados e foi acusado por Joaquim Barbosa de um desvio de pelo menos R$ 10 milhões em verbas de publicidade da Câmara de Deputados.
Lewandovski questionou essa acusação com dados obtidos por auditores do TCU. Mostrou que o dinheiro supostamente desviado foi usado aonde deveria e por quem deveria.
Também mostrou dados que sugerem que os 50 000 reais –a única vinculação conhecida de João Paulo com o esquema de Marcos Valério-Delúbio Soares — que a mulher do deputado foi buscar no Banco Rural foram usados com despesas de campanha. Citou vários testemunhos para sustentar isso. Citou peritos e se apoiou em vários documentos. Você pode, é claro, duvidar dessa interpretação. Mas é recomendável encontrar fatos para apoiar o que pensa. A tese da acusação é que os 50 000 foram usados como propina para Valério conseguir o contrato de R$ 10 milhões. Verdade? Mentira? Apenas com fatos novos é possível sustentar uma outra visão.
Após o voto de Lewandovski já não vale ficar falando que tudo é “pizza” e clamando contra a impunidade sem que se saiba, com clareza, o que deve ser punido, quem, por que, com base em que.
E agora?
É certo que teremos nova confusão. Depois de deixar a definição do sistema de votação para o plenário, Ayres Britto terá de se haver com um conflito anunciado. Na segunda feira Barbosa quer responder ao voto do revisor.
Lewandovski, por sua vez, já disse que se houver replica do relator, ele vai querer uma tréplica. E aí ninguém sabe como a coisa vai continuar.
Só é preciso lembrar que vai ficar feio se surgirem tentativas — insinuadas entre comentaristas e observadores do julgamento — interessadas em enquadrar Lewandowski. Já começam a dizer que ele falou demais, que extrapalou…Agora se diz que o papel
de revisor não pode ser contestar o relator, contrapor-se, apresentar outra visão. Conhecemos essa conversinha.
As regras do fatiamento foram apresentadas na última hora para o tribunal. Se outros juizes já tinham conhecimento delas, o próprio Lewandovski deixou
claro que era o último a saber. A defesa fez o possível para convencer Ayres Brito a voltar atrás. A resposta foi um sorriso antes da explicação de que a matéria estava (ou era) preclusa…
Não é conveniente, agora, mudar as regras de novo.Vai ficar feio. Vai dar a impressão de que as regras só servem quando ajudam uma das partes.
E só estamos no primeiro item do voto de Barbosa. São oito. Se tivermos réplicas e tréplicas todas as vezes, vai ser difícil dizer que a defesa é que está fazendo tudo para prolongar o julgamento e impedir um veredito antes das eleições para prefeito.
E os demais ministros, quando começam a votar? Ninguém sabe. E o Cezar Peluso, cuja aposentadoria motivou tantas mudanças no calendário e até no sistema de votação, como fica? Muito menos. Se der empate no final, como fica o voto de Ayres Brito? Votará duas vezes?
Essa é a dura realidade do julgamento. Já tinha sido um pouco exagerado definir claramente as regras de votação — o fatiamento — quando todos estavam certos de que seria um debate convencional, com o ponto de vista do relator, depois do revisor e assim por diante.
O voto de Lewandovski foi importante por causa do conteúdo. Mostrou que é possível apontar fragilidades na denúncia.
Deixou claro que a tese da “organização criminosa” que comandava uma rede de assalto ao Estado, com seus núcleos e uma divisão de trabalho de estilo mafioso é muito fácil de descrever mas difícil de demonstrar com provas consistentes. É fácil falar em “compra de consciência” para quem acredita que todos os políticos são corruptos.
Mas é difícil sustentar que isso aconteceu quando as pessoas têm o direito de se defender, de dar sua versão e usufruir de todas as garantias de um regime democrático. São centenas de testemunhas que negam a denúncia. Não custa lembrar. Há muito tempo a testemunha principal parou de dizer aquilo que disse.
Lewandovski foi ouvir o outro lado, foi perguntar aquilo que ninguém sabia e não queria saber.
Não inocentou ninguém por princípio. Tanto que na véspera ele deu um voto igual ao do relator.
Mas ele deixou claro que enxerga a denúncia de uma forma mais sofisticada, diferenciada, numa visão que se encaminha para negar que todos estivessem envolvidos na mesma atividade, fazendo as mesmas coisas, porque todos fariam parte de uma “organização criminosa, “sob comando de um “núcleo político”, e outros “núcleos” estruturados e organizados. É claro que Lewandovski enxerga o crime, o roubo, a bandalheira. Mas sabe que há casos em que é legítimo falar em corrupção. Em outros, há crime eleitoral.
Mas não quer fingir que tem o domínio de fatos que não conhece por inteiro. Por isso ele diferencia a “verdade processual”, aquela que se pode conhecer, da “Verdade,” aquela que se pode até imaginar, conceber, descrever, mas não cabe nos autos.
Vamos falar de vida real.
É complicado imaginar que José Dirceu e Luiz Gushiken pudessem participar de uma mesma organização. Mesmo quem quer acreditar que ambos são personagens sem uma gota de escrúpulo — é uma hipótese — deveria saber que é difícil imaginar que os dois pudessem ficar mais de 5 minutos em qualquer tipo de organização, mesmo que fosse uma inocente tropa de escoteiros – muito menos uma quadrilha, que exige um grau de confiança, de intimidade e lealdade que os dois nunca tiveram. Eles passaram boa parte da vida pública, da campanha e do governo conspirando um contra o outro, falando mal um do outro, disputando e até se sabotando. Como é que poderiam se unir para uma ação comum, clandestina, arriscadíssima? Como é que o Gushiken, aliado e padrinho de Palocci no início do governo, iria subordinar-se a Dirceu, adversário e concorrente?
A visão que ignora as verdades duras da política não combina com essa denúncia. É coisa de quem pretende acreditar que todos são criminosos comuns, 100% despolitizados.
Voltando a Lewandovski. Ele deixou claro que, para acreditar na tese de que Joáo Paulo desviava recursos públicos da Câmara – isso é sempre importante para caracterizar corrupção – seria preciso acreditar que ele envolveu as principais empresas de comunicação do país nessa empreitada.
Se fossem verdadeiras, as célebres falsas despesas que teria declarado para desviar dinheiro envolviam os principais grupos de midia do país, as emissoras de maior audiência, os jornais de maior circulação e etc. Imagine o surrealismo: os mesmos grupos que faziam a denúncia do mensalão durante o dia estariam se locupletando com Joáo Paulo à noite pelo mesmo crime que denunciavam. Me desculpem. Se isso fosse verdade, o “maior escândalo da história” teria de ser chamado de “mensalão do português”, com todo respeito, apenas como uma homenagem aos tempos em que nossos humoristas se vingavam de nossa experiência colonial. Mais uma vez, está tudo lá, com recibo, perícia e assim por diante. Ou seja: ao menos neste caso não houve desvio, nem terceirização suspeita. Os veículos de comunicação receberam pagamentos legítimos para veicular publicidade definida em campanhas da Câmara. Ponto. Parágrafo.
O voto de Lewandovski tem a modéstia de quem admite que está diante de uma realidade mais complexa e compreende que ela só é compreensível a partir de uma visão sofisticada, sem simplismos nem frases de efeito. Não sei qual efeito seu voto terá sobre os demais ministros. Também não faço ideia de seu posicionamento nos próximos itens do julgamento.
Mas está na cara que sua intervenção, que teve de ser reescrita à última hora para se adaptar as regras a que só foi apresentado com o debate já em andamento, representou uma contribuição lúcida ao debate. Ninguém precisa estar de acordo com ele. O julgamento só começou e ainda há muito para ser debatido. Algumas das vozes mais experientes da casa sequer se posicionaram e terão muito a dizer.
Mas acredite: todos terão a ganhar com isso.
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Mas Lewandovski deu um voto claro e bem pensado, com argumentos e com fatos relevantes. Os especialistas dizem isso. Não eu.
Na véspera, ele condenou Henrique Pizzolato, Marcos Valério e outros envolvidos em desvio de verbas do Visanet. Parecia que ontem iria repetir a dose, condenando João Paulo Cunha, que era presidente da Câmara de Deputados e foi acusado por Joaquim Barbosa de um desvio de pelo menos R$ 10 milhões em verbas de publicidade da Câmara de Deputados.
Lewandovski questionou essa acusação com dados obtidos por auditores do TCU. Mostrou que o dinheiro supostamente desviado foi usado aonde deveria e por quem deveria.
Também mostrou dados que sugerem que os 50 000 reais –a única vinculação conhecida de João Paulo com o esquema de Marcos Valério-Delúbio Soares — que a mulher do deputado foi buscar no Banco Rural foram usados com despesas de campanha. Citou vários testemunhos para sustentar isso. Citou peritos e se apoiou em vários documentos. Você pode, é claro, duvidar dessa interpretação. Mas é recomendável encontrar fatos para apoiar o que pensa. A tese da acusação é que os 50 000 foram usados como propina para Valério conseguir o contrato de R$ 10 milhões. Verdade? Mentira? Apenas com fatos novos é possível sustentar uma outra visão.
Após o voto de Lewandovski já não vale ficar falando que tudo é “pizza” e clamando contra a impunidade sem que se saiba, com clareza, o que deve ser punido, quem, por que, com base em que.
E agora?
É certo que teremos nova confusão. Depois de deixar a definição do sistema de votação para o plenário, Ayres Britto terá de se haver com um conflito anunciado. Na segunda feira Barbosa quer responder ao voto do revisor.
Lewandovski, por sua vez, já disse que se houver replica do relator, ele vai querer uma tréplica. E aí ninguém sabe como a coisa vai continuar.
Só é preciso lembrar que vai ficar feio se surgirem tentativas — insinuadas entre comentaristas e observadores do julgamento — interessadas em enquadrar Lewandowski. Já começam a dizer que ele falou demais, que extrapalou…Agora se diz que o papel
de revisor não pode ser contestar o relator, contrapor-se, apresentar outra visão. Conhecemos essa conversinha.
As regras do fatiamento foram apresentadas na última hora para o tribunal. Se outros juizes já tinham conhecimento delas, o próprio Lewandovski deixou
claro que era o último a saber. A defesa fez o possível para convencer Ayres Brito a voltar atrás. A resposta foi um sorriso antes da explicação de que a matéria estava (ou era) preclusa…
Não é conveniente, agora, mudar as regras de novo.Vai ficar feio. Vai dar a impressão de que as regras só servem quando ajudam uma das partes.
E só estamos no primeiro item do voto de Barbosa. São oito. Se tivermos réplicas e tréplicas todas as vezes, vai ser difícil dizer que a defesa é que está fazendo tudo para prolongar o julgamento e impedir um veredito antes das eleições para prefeito.
E os demais ministros, quando começam a votar? Ninguém sabe. E o Cezar Peluso, cuja aposentadoria motivou tantas mudanças no calendário e até no sistema de votação, como fica? Muito menos. Se der empate no final, como fica o voto de Ayres Brito? Votará duas vezes?
Essa é a dura realidade do julgamento. Já tinha sido um pouco exagerado definir claramente as regras de votação — o fatiamento — quando todos estavam certos de que seria um debate convencional, com o ponto de vista do relator, depois do revisor e assim por diante.
O voto de Lewandovski foi importante por causa do conteúdo. Mostrou que é possível apontar fragilidades na denúncia.
Deixou claro que a tese da “organização criminosa” que comandava uma rede de assalto ao Estado, com seus núcleos e uma divisão de trabalho de estilo mafioso é muito fácil de descrever mas difícil de demonstrar com provas consistentes. É fácil falar em “compra de consciência” para quem acredita que todos os políticos são corruptos.
Mas é difícil sustentar que isso aconteceu quando as pessoas têm o direito de se defender, de dar sua versão e usufruir de todas as garantias de um regime democrático. São centenas de testemunhas que negam a denúncia. Não custa lembrar. Há muito tempo a testemunha principal parou de dizer aquilo que disse.
Lewandovski foi ouvir o outro lado, foi perguntar aquilo que ninguém sabia e não queria saber.
Não inocentou ninguém por princípio. Tanto que na véspera ele deu um voto igual ao do relator.
Mas ele deixou claro que enxerga a denúncia de uma forma mais sofisticada, diferenciada, numa visão que se encaminha para negar que todos estivessem envolvidos na mesma atividade, fazendo as mesmas coisas, porque todos fariam parte de uma “organização criminosa, “sob comando de um “núcleo político”, e outros “núcleos” estruturados e organizados. É claro que Lewandovski enxerga o crime, o roubo, a bandalheira. Mas sabe que há casos em que é legítimo falar em corrupção. Em outros, há crime eleitoral.
Mas não quer fingir que tem o domínio de fatos que não conhece por inteiro. Por isso ele diferencia a “verdade processual”, aquela que se pode conhecer, da “Verdade,” aquela que se pode até imaginar, conceber, descrever, mas não cabe nos autos.
Vamos falar de vida real.
É complicado imaginar que José Dirceu e Luiz Gushiken pudessem participar de uma mesma organização. Mesmo quem quer acreditar que ambos são personagens sem uma gota de escrúpulo — é uma hipótese — deveria saber que é difícil imaginar que os dois pudessem ficar mais de 5 minutos em qualquer tipo de organização, mesmo que fosse uma inocente tropa de escoteiros – muito menos uma quadrilha, que exige um grau de confiança, de intimidade e lealdade que os dois nunca tiveram. Eles passaram boa parte da vida pública, da campanha e do governo conspirando um contra o outro, falando mal um do outro, disputando e até se sabotando. Como é que poderiam se unir para uma ação comum, clandestina, arriscadíssima? Como é que o Gushiken, aliado e padrinho de Palocci no início do governo, iria subordinar-se a Dirceu, adversário e concorrente?
A visão que ignora as verdades duras da política não combina com essa denúncia. É coisa de quem pretende acreditar que todos são criminosos comuns, 100% despolitizados.
Voltando a Lewandovski. Ele deixou claro que, para acreditar na tese de que Joáo Paulo desviava recursos públicos da Câmara – isso é sempre importante para caracterizar corrupção – seria preciso acreditar que ele envolveu as principais empresas de comunicação do país nessa empreitada.
Se fossem verdadeiras, as célebres falsas despesas que teria declarado para desviar dinheiro envolviam os principais grupos de midia do país, as emissoras de maior audiência, os jornais de maior circulação e etc. Imagine o surrealismo: os mesmos grupos que faziam a denúncia do mensalão durante o dia estariam se locupletando com Joáo Paulo à noite pelo mesmo crime que denunciavam. Me desculpem. Se isso fosse verdade, o “maior escândalo da história” teria de ser chamado de “mensalão do português”, com todo respeito, apenas como uma homenagem aos tempos em que nossos humoristas se vingavam de nossa experiência colonial. Mais uma vez, está tudo lá, com recibo, perícia e assim por diante. Ou seja: ao menos neste caso não houve desvio, nem terceirização suspeita. Os veículos de comunicação receberam pagamentos legítimos para veicular publicidade definida em campanhas da Câmara. Ponto. Parágrafo.
O voto de Lewandovski tem a modéstia de quem admite que está diante de uma realidade mais complexa e compreende que ela só é compreensível a partir de uma visão sofisticada, sem simplismos nem frases de efeito. Não sei qual efeito seu voto terá sobre os demais ministros. Também não faço ideia de seu posicionamento nos próximos itens do julgamento.
Mas está na cara que sua intervenção, que teve de ser reescrita à última hora para se adaptar as regras a que só foi apresentado com o debate já em andamento, representou uma contribuição lúcida ao debate. Ninguém precisa estar de acordo com ele. O julgamento só começou e ainda há muito para ser debatido. Algumas das vozes mais experientes da casa sequer se posicionaram e terão muito a dizer.
Mas acredite: todos terão a ganhar com isso.
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