Liberdade de expressão
A democracia e seus perseguidos
Escrevinhador
Por Vladimir Safatle, na CartaCapital
O governo do Equador deu asilo ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange. O Reino Unido, com seu conhecido respeito seletivo pela legislação internacional, desenterrou uma lei bisonha para afirmar que poderia invadir a embaixada do país latino-americano, a fim de capturar seu inimigo público. Até onde consigo lembrar, esta será a primeira vez que uma embaixada é invadida pela polícia do país no qual ela está situada. Nem mesmo em ditaduras algo parecido ocorreu.
Há de se perguntar se todo esse zelo do Reino Unido pelo cumprimento de um pedido de extradição feito
pela Suécia vem realmente do amor à lei. Ou será que devemos dizer que Assange é o protótipo claro de um perseguido político pela democracia liberal?
Alguns tendem a defender a posição dos governos britânico e sueco com o argumento de que, enfim, ninguém está acima da lei. Independentemente do que Assange represente, isso não lhe daria direito de “estuprar” duas garotas. É verdade que a definição de estupro pela legislação sueca é mais flexível do que a habitual. Ela engloba imagens como: um homem e uma mulher que estão na cama de comum acordo, sem nenhum tipo de coerção, mas que, em um dado momento, veem a situação modificada pelo fato de a garota dizer “não” e mesmo assim ser, de alguma forma, forçada.
Vale a pena lembrar que tal definição é juridicamente tão complicada que, quando a acusação contra Assange foi apresentada pela primeira vez à Justiça sueca, ela foi recusada por uma magistrada que entendeu ser muito difícil provar a veracidade da descrição. A acusação só foi aceita quando reapresentada uma segunda vez, não por acaso logo depois de o WikiLeaks começar a divulgar telegramas comprometedores da diplomacia internacional.
Mas não faltaram aqueles de bom coração que perguntaram: se a acusação é tão difícil de ser provada, então por que Assange não vai à Suécia e se defende? Porque a Suécia pode aceitar um pedido de extradição para os EUA, onde ele seria julgado por crime de espionagem e divulgação de segredos de Estado, o que lhe poderia valer até a pena de morte. Não seria a primeira vez que alguém enfrentaria a cadeira elétrica por “crimes” dessa natureza.
Nesse sentido, é possível montar um quebra-cabeça no qual descobrimos a imagem de uma verdadeira perseguição política. Persegue-se atualmente não de uma maneira explícita, mas utilizando algum tipo de acusação que visa desqualificar moralmente o perseguido. Assange não estaria sendo caçado por ter inaugurado um mundo onde nenhum segredo de Estado está seguramente distante da esfera da opinião pública. Um mundo de transparência radical, no qual os interesses inconfessáveis do poder são sistematicamente abertos. Ele estaria sendo caçado por ser um maníaco sexual. Seu problema não seria político, mas moral.
Desde há muito é assim que a democracia liberal tenta esconder seu totalitarismo. Ela procura desmoralizar seus perseguidos, isso em vez de simplesmente dar conta das questões que tais pessoas colocam. No caso de Assange, ele apenas colocou em prática dois princípios que todo político liberal diz respeitar: transparência e honestidade. Mostrar tudo o que se faz.
Sua perseguição evidencia como vivemos em um mundo em que todos sabem que os governos não fazem, na política internacional, aquilo que dizem. Há um acordo tácito a respeito desse cinismo. Mas, quando essa contradição é exposta de maneira absoluta, então ela torna-se insuportável.
Lembrem, por exemplo, das razões aventadas pelos governos dos países centrais para a não publicação dos telegramas: eles colocariam em risco a vida de funcionários e diplomatas. Na verdade, eles só colocaram em risco o emprego de analistas desastrados, ditadores como o tunisiano Ben-Ali (que teve seus casos de corrupção divulgados) e negociadores de paz mal-intencionados. Por isso, a boa questão é: o mundo seria melhor ou pior com pessoas dispostas a fazer o que Julian Assange fez?
Por fim, vale dizer que aqueles que realmente se interessam por uma mídia livre precisam saudar a decisão do governo equatoriano. A mídia mundial não tem direito à ambiguidade neste caso. Nunca a liberdade de imprensa esteve tão ameaçada quanto agora, diante do problema do WikiLeaks. Pois o site de Assange é o modelo de um novo regime de divulgação de informações e de pressão contra os Estados. Ele é a aplicação da cultura hacker na revitalização do papel da mídia como quarto poder.
Leia outros textos de Outras Palavras
Alguns tendem a defender a posição dos governos britânico e sueco com o argumento de que, enfim, ninguém está acima da lei. Independentemente do que Assange represente, isso não lhe daria direito de “estuprar” duas garotas. É verdade que a definição de estupro pela legislação sueca é mais flexível do que a habitual. Ela engloba imagens como: um homem e uma mulher que estão na cama de comum acordo, sem nenhum tipo de coerção, mas que, em um dado momento, veem a situação modificada pelo fato de a garota dizer “não” e mesmo assim ser, de alguma forma, forçada.
Vale a pena lembrar que tal definição é juridicamente tão complicada que, quando a acusação contra Assange foi apresentada pela primeira vez à Justiça sueca, ela foi recusada por uma magistrada que entendeu ser muito difícil provar a veracidade da descrição. A acusação só foi aceita quando reapresentada uma segunda vez, não por acaso logo depois de o WikiLeaks começar a divulgar telegramas comprometedores da diplomacia internacional.
Mas não faltaram aqueles de bom coração que perguntaram: se a acusação é tão difícil de ser provada, então por que Assange não vai à Suécia e se defende? Porque a Suécia pode aceitar um pedido de extradição para os EUA, onde ele seria julgado por crime de espionagem e divulgação de segredos de Estado, o que lhe poderia valer até a pena de morte. Não seria a primeira vez que alguém enfrentaria a cadeira elétrica por “crimes” dessa natureza.
Nesse sentido, é possível montar um quebra-cabeça no qual descobrimos a imagem de uma verdadeira perseguição política. Persegue-se atualmente não de uma maneira explícita, mas utilizando algum tipo de acusação que visa desqualificar moralmente o perseguido. Assange não estaria sendo caçado por ter inaugurado um mundo onde nenhum segredo de Estado está seguramente distante da esfera da opinião pública. Um mundo de transparência radical, no qual os interesses inconfessáveis do poder são sistematicamente abertos. Ele estaria sendo caçado por ser um maníaco sexual. Seu problema não seria político, mas moral.
Desde há muito é assim que a democracia liberal tenta esconder seu totalitarismo. Ela procura desmoralizar seus perseguidos, isso em vez de simplesmente dar conta das questões que tais pessoas colocam. No caso de Assange, ele apenas colocou em prática dois princípios que todo político liberal diz respeitar: transparência e honestidade. Mostrar tudo o que se faz.
Sua perseguição evidencia como vivemos em um mundo em que todos sabem que os governos não fazem, na política internacional, aquilo que dizem. Há um acordo tácito a respeito desse cinismo. Mas, quando essa contradição é exposta de maneira absoluta, então ela torna-se insuportável.
Lembrem, por exemplo, das razões aventadas pelos governos dos países centrais para a não publicação dos telegramas: eles colocariam em risco a vida de funcionários e diplomatas. Na verdade, eles só colocaram em risco o emprego de analistas desastrados, ditadores como o tunisiano Ben-Ali (que teve seus casos de corrupção divulgados) e negociadores de paz mal-intencionados. Por isso, a boa questão é: o mundo seria melhor ou pior com pessoas dispostas a fazer o que Julian Assange fez?
Por fim, vale dizer que aqueles que realmente se interessam por uma mídia livre precisam saudar a decisão do governo equatoriano. A mídia mundial não tem direito à ambiguidade neste caso. Nunca a liberdade de imprensa esteve tão ameaçada quanto agora, diante do problema do WikiLeaks. Pois o site de Assange é o modelo de um novo regime de divulgação de informações e de pressão contra os Estados. Ele é a aplicação da cultura hacker na revitalização do papel da mídia como quarto poder.
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