Resistência à camisinha aumenta incidência de Aids no RS
Rachel Duarte no SUL 21
Você já fez sexo sem camisinha? A reposta entre a maioria dos gaúchos é: sim. Segundo relatos dos profissionais que trabalham na área da saúde com prevenção de HIV/Aids, sobram preservativos nos postos e a população jovem está cada vez mais destemida em relação a doença. Em Porto Alegre 70% da demanda de distribuição de camisinhas reduziu nos últimos anos. Por outro lado, 23% do total de 630 mil infectados em todo o Brasil são da região Sul, sendo que a capital gaúcha lidera o ranking dos casos.
Além da resistência ao uso do preservativo, entidades que lutam contra a Aids criticam a ausência de campanhas mais ofensivas para alertar sobre a gravidade da doença. Entre outros aspectos que também podem explicar o aumento da epidemia no Rio Grande do Sul, está um caldo de assuntos polêmicos, como uso de drogas, prostituição e homossexualismo, que são vistos com mais conservadorismo entre gaúchos do que qualquer outra população brasileira.
Segundo dados do UNIAIDS do Ministério da Saúde, Porto Alegre utltrapassou São Paulo nos indicadores de portadores do vírus HIV. São 99,8 casos a cada 100 mil habitantes, sendo 15 mil concentrados em Porto Alegre. Logo atrás da capital, vem Alvorada, Uruguaiana, Sapucaia do Sul e Canoas. Os dados significam que 1% da população gaúcha é portadora do HIV. Porém, os números podem ser ainda maiores, uma vez que os dados são de registro de casos já diagnosticados e ainda há dificuldades no acesso ao exame. “Os dados não são novidade. Faz cinco anos que o RS tem a maioria de casos do país e Porto Alegre é a cidade brasileira com maior incidência. Existe um conjunto de razões que explicam isto”, defende o coordenador do serviço estadual de Controle do HIV/Aids, Ricardo Charão.
Em termos epidemiológicos, Charão salienta que o vírus existente entre a população gaúcha tem subtipo C, que é considerado o mais agressivo e virulento. “Age mais rapidamente no organismo, se espalha com mais facilidade e apresenta maior resistência aos medicamentos”, explica. Ele relata que além da dificuldade de acesso às informações para prevenção da doença, fazer o exame ainda é um desafio a ser superado pela gestão pública. “Este é o foco da campanha da Secretaria Estadual de Saúde. Mobilizar e incentivar a sociedade a buscar o diagnóstico como um direito seu”, afirma.
Diferença de dados do RS não se justificaria em fatores secundários
Uma das teorias utilizadas até pouco tempo para justificar que o aumento dos indicadores de casos de Aids no estado era positivo, por demonstrar que o Rio Grande do Sul tinha maior capacidade de diagnosticar os casos, já não serve mais, segundo a professora do curso de Pós-Graduação de Saúde Coletiva da Unisinos, Nêmora Barcellos. “O Ministério da Saúde adotou uma metodologia diferente para diagnosticar, de modo a reforçar a atuação dos profissionais em realizar os diagnósticos e aproveitar dados de outros bancos, como dos laboratórios particulares”, diz.
De acordo com médica, a diferença do Rio Grande do Sul em dados reais em relação aos demais estados é verdadeira e não está justificada em fatores secundários. “Eu acredito que nos últimos 10 anos as políticas públicas diminuíram a sua agressividade no RS. Não vemos tantas campanhas lembrando a população do teste e da prevenção. São coisas que tem que ser feitas cotidianamente. A cada dia aumenta o número de adolescentes sexualmente ativos. Existe uma resistência natural ao uso do preservativo. Se não conversar com a população a sensação é de que a Aids não existe ou não é mais um problema”, cobra.
No dia 1º de dezembro, Dia Mundial de Combate a Aids, todos lembram que a Aids existe e já atingiu 34 milhões de pessoas no mundo. A Equipe Voluntária Brasil (EVB), que atua desde 2002 em blitze nos locais de convívios dos jovens no Rio Grande do Sul e Santa Catarina, é uma das formiguinhas que lutam contra a Aids em um calendário permanente. “As principais capitais pecam no trabalho de prevenção, já que hoje o tratamento para os portadores do HIV está cada vez mais qualificado e acessível. As campanhas acabam sendo sazonais em datas comemorativas ou eventos onde há mais apelo ao sexo”, disse.
Dentro das ações educativas da ONG pela região metropolitana de Porto Alegre, a EVB observa que o comportamento dos jovens em relação ao sexo mudou. Apesar de não ver o sexo como tabu e se iniciarem cada vez mais cedo na prática sexual, os adolescentes estão mais inconsequentes em relação aos riscos à sua saúde no sexo desprotegido. “Há alguns anos quando começamos as palestras era muito difícil a abordagem e incentivar a usar preservativo. Hoje, o assunto é encarado de forma mais liberal e a proteção também entra na lógica do ‘livre’. Alguns dizem ‘não precisamos nos preocupar, agora tem tratamento’”, relata.
“Há uma feminilização da Aids no RS”, diz Ricardo Charão
Entre os aspectos culturais que influenciam para incidência da Aids entre os gaúchos está o machismo, na avaliação do coordenador do serviços de controle de HIV/Aids do governo gaúcho, Ricardo Charão. “Há uma feminilização da doença. As mulheres lideram os casos no RS. Nossa sociedade é machista e as mulheres tem mais dificuldades para negociar o uso do preservativo. Além do que, as mulheres buscam mais o diagnóstico do que os homens. Na medida em que os homens não sabem que são atingidos, eles seguem contaminando outras mulheres”, explica.
Segundo Charão, a resistência ao uso da camisinha está tão internalizada na nova geração que os estoques de preservativos oferecidos gratuitamente nos postos cada vez sobram mais. “A procura diminui nos postos de saúde”, salienta. Já a professora de Medicina Coletiva Nêmora Barcellos, que também é funcionária da Secretaria Estadual de Saúde, contraargumenta que o problema está na estagnação do serviço público no enfrentamento da transmissão do vírus HIV. “Sobram preservativos porque não são distribuídos. Em Porto Alegre, por exemplo, a Secretaria escolhe quantos preservativos que serão dados para determinadas regiões. Não cabe fazer distinção no serviço público”, alerta.
Segundo Nêmora, o controle na distribuição dos preservativos é equivocado, por mais que possa vir a atender a um mercado informal. “Se tem pessoas que pegam em grande quantidade para vender, alguém está comprando. Isto significa que estão usando. Cada vez que uma pessoa usa um preservativo é uma chance de ter menos pacientes aidéticos no futuro. O custo do preservativo de hoje é mais barato do que a manutenção do tratamento do portador do vírus amanhã”, falou.
Jovens e gays seguem os mais vulneráveis ao vírus
Levando-se em consideração o período de casos de Aids notificados de 1990 a junho de 2010 no Brasil, verifica-se um aumento proporcional da categoria de exposição entre homens que fazem sexo com homens, passando de 25,2% em 1990 para 46,4% em 2010. Entre os jovens gays de 18 a 24 anos, a prevalência é de 4,3%. Quando comparados com os jovens em geral, a chance de um jovem gay estar infectado pelo HIV é 13 vezes maior.
No Rio Grande do Sul, há um aumento nos casos de homossexuais jovens contaminados, segundo Ricardo Charão. “No surgimento da Aids no país os homossexuais foram os mais afetados e se envolveram na luta contra a epidemia, em ONGs, etc. A geração de agora não se assusta mais com a Aids como se assustou a geração anterior”, avalia.
A presidente da Associação de Travestis e Transexuais do Rio Grande do Sul, Igualdade-RS, Marcelly Malta, confirma que o uso do preservativo está banalizado e não é prioritário nem mesmo entre as profissionais do sexo. “Tivemos um retrocesso muito grande neste aspecto. Elas (travestis) dizem que hoje tem medicação para tudo e a Aids é como a diabetes, hipertensão, se convive tranquilamente”, conta. Como representante de um trabalho de prevenção de DSTs e Aids junto as travestis de Porto Alegre diariamente, Marcelly conta que a dificuldade é grande de incentivar o uso da camisinha. “Temos cotas que recebemos para distribuição e estamos acumulando. Elas dizem que pegam nos postos e não é verdade. Não estão usando. Tem clientes que pagam mais para fazer programa sem camisinha”, relata.
“Eu afirmo, como representante das travestis, que a camisinha não está sendo usada”
Muitos clientes são pais de família, com filhos e esposas que buscam outros prazeres fora de casa. Na negociação com as travestis prostitutas, chegam a dizer coisas como “eu sou pai de família e sou limpinho, não tem problema”. Segundo Marcelly, as travestis procuram usar preservativo quando estão com clientes, mas, nem sempre usam com parceiros fixos e não raro cedem ao preço dos programas sem preservativo.
Na orientação aos jovens gays, Marcelly conta que a dificuldade é enfrentar o conservadorismo na comunidade escolar. “Não conseguimos ser parceiros para orientar os homossexuais nas escolas porque sempre acham que vamos incentivar a prostituição. Mas tem travestis cada vez mais jovens, alguns começando a ter relações com 10 anos de idade. O caminho é prevenir. Usar a camisinha. Eu afirmo, como representante das travestis, que a camisinha não está sendo usada”, fala.
O coordenador do serviço de Controle do HIV/Aids Ricardo Charão e a professora de Saúde Coletiva Nêmora Barcellos concordam que o melhor caminho para enfrentar a epidemia é adequar o serviço público. “Não cabe a nós darmos resposta à sociedade sobre qual prática é adequada ou não. À gestão pública cabe garantir a saúde coletiva e nos adequarmos aos novos tempos. Não podemos atuar no enfrentamento da doença e nas campanhas de forma preconceituosa”, alerta Charão.
“Se há preconceito tem que ser vencido. Melhorar o acesso ao diagnóstico e ao tratamento ajuda, mas tem que ser usado o preservativo. Se temos dificuldades culturais neste sentido, isto tem que ser superado e não utilizado como desculpa no serviço público”, recomenda Nêmora.
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