Rosa Parks e a Massa Crítica
Por Enrico Canali, do blog Bike is Beautiful
Há pouco mais de 55 anos, uma costureira negra andava em um ônibus na cidade de Montgomery, no Alabama, no sul dos Estados Unidos. Naquela época, embora a escravidão já tivesse sido extinta formalmente, a segregação racial era institucionalizada. Pelas leis locais, os brancos deveriam sentar nos lugares da frente do ônibus, preenchendo-os em direção ao fundo. Já os negros entravam pela porta de trás, ocupando os lugares vagos dali para a frente. Quando todos os lugares estivessem ocupados e um novo indivíduo branco entrasse no ônibus, exigia-se que os negros que ocupavam os assentos mais à frente se levantassem e cedessem o lugar. Afinal, a lei era clara (em todos os sentidos), e quem a questionasse ou desrespeitasse merecia as penas previstas.
Mas no dia 1° de dezembro de 1955, aquela costureira negra não levantou, desobedecendo as ordens do motorista do coletivo. Ao defender seus princípios, Rosa Parks desrespeitou a lei e acabou multada e presa. O fato serviu de estopim para o boicote aos ônibus de Montgomery, tendo como um dos líderes o até então pouco conhecido pastor Martin Luther King Jr, de apenas 26 anos. O movimento durou mais de um ano. Do lado da desobediência civil, os negros —que representavam 75% dos passageiros do transporte público— foram estimulados a irem para o trabalho e para a escola de carona, de táxi, a pé ou mesmo de bicicleta. Taxistas (brancos e negros), em determinado momento, passaram a cobrar dos negros o mesmo valor das passagens de ônibus, atitude que foi logo considerada ilegal pelas autoridades, rendendo multas e cassação de licenças.
Mas também houve o lado da repressão violenta, da cólera dos defensores do establishment e do “estado de direito”. A casa de Luther King foi alvo de coquetéis Molotov, assim como quatro igrejas batistas ligadas à comunidade negra. Mais de 150 manifestantes foram presos por “frustrar” o serviço dos ônibus, inclusive Luther King, que declarou: ”Estou orgulhoso de meu crime. O crime de juntar meu povo em um protesto não violento contra a injustiça.”
Vamos agora para o hemisfério sul, meio século depois.
Nesta semana, a Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC), órgão de fiscalização do trânsito de Porto Alegre, encaminhou ao Ministério Público imagens dos passeios da Massa Crítica e pediu providências, sob o argumento de que a movimentação dos ciclistas seja uma “potencial infração da ordem urbanística”. Isso porque a empresa não era avisada com antecedência dos dias e horários das bicicletadas e nem do percurso a ser seguido. Acontece que faz quase vinte anos que a Massa Crítica acontece, e hoje já são mais de 200 cidades no mundo. Em todas elas, a data é a mesma: a última sexta-feira de cada mês. Já o itinerário é definido na hora, espontaneamente, pelos participantes. Alguns detratores do movimento argumentam que os ciclistas interrompem o fluxo dos carros ao bloquearem os cruzamentos quando o grupo está passando e o semáforo fica vermelho. As acusações são variadas, das mais estapafúrdias (que não merecem perda de tempo aqui) até algumas, digamos, “plausíveis”, como por exemplo: se os ciclistas defendem mais espaço e respeito para esse meio de transporte, então devem dar o exemplo e obedecer as leis, parando nos sinais vermelhos e andando pela borda da via, sem atrapalhar o tráfego de veículos automotores.
Nesse ponto precisamente, vejo muita semelhança entre Rosa Parks e a Massa Crítica. Tanto a ativista negra quanto os ciclistas desobedecem as leis. Mas são leis que foram criadas por pessoas que não levaram em consideração as realidades e necessidades nem dos negros e nem dos ciclistas. Os semáforos só existem em vias que tenham um alto movimento de veículos automotores, tanto é que em cruzamentos de ruas no interior de bairros residenciais, vale a preferencial (quem vê a placa de “Pare” na esquina deve parar e dar passagem a quem vem pela outra rua). Os semáforos e as leis de trânsito foram criados para facilitar o fluxo de carros.
Até a construção de ciclovias na cidade tem algo de muito parecido com os ônibus de Montgomery. Primeiro, fizeram uma na Av. Diário de Notícias, onde não tinha nem calçamento antes, e onde não se fosse “roubar” espaço dos carros. Mas fizeram mal e porcamente: quem passa por lá vê buracos e consertos enjambrados. Sem contar que é uma via que praticamente liga o nada a lugar nenhum, sendo pouco útil para quem quer ir ao trabalho de bicicleta. (Qualquer semelhança com os assentos do fundo do ônibus de Montgomery não é mera coincidência.)
No caso da Ipiranga, sim, realmente, é uma via em lugar mais central da cidade, e é bem provável que seja usada diariamente como transporte. Mas está sendo feita no talude, entre o tráfego intenso e o arroio (ó o fundão do ônibus aqui de novo), num espaço que não era utilizado pra nada antes e que oferece risco aos ciclistas, além de segregá-los ainda mais da vida comunitária. Afinal, seria impensável transformar uma faixa de carros à direita em ciclovia, perto do comércio e das residências, onde seria mais adequado.
Mas também era impensável que uma negra no sul racista dos Estados Unidos de 50 anos atrás não cedesse espaço para um branco. Hoje, independentemente de como vez conduzindo a política e a economia, o presidente daquele país é um negro, e ele com certeza deve muito a Rosa Parks e a tantos outros. E depois disso os brancos não foram proibidos de entrar no ônibus pela frente, muito menos tiveram que começar a usar algum tipo de pó para parecerem negros (como se usou pó-de-arroz em outras épocas). Assim como ninguém que quer usar a bicicleta com segurança e respeito está tentando obrigar todos os motoristas a usarem bicicletas, como pregam aqueles defensores de ideias estapafúrdias de que falei ali em cima.
Daqui a 50 anos, tenho convicção de que muita gente em Porto Alegre usará a bicicleta como meio de transporte, e não só os alternativos, veganos, descolados ou atletas, mas mães com seus filhos, casais de idosos, executivos e tantos outros. E todo mundo deverá muito à Massa Crítica.
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