quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

a cara pálida e o gosto ruim no nosso amor

Essa gente que bota gosto ruim no nosso amor

Achei o Rafael Galvão no SUL 21


Assim que vim morar em Sergipe, no começo dos anos 80, um comercial da Telebrás falava de Canindé do São Francisco — cidade onde hoje está a Usina Hidrelétrica de Xingó. O município sergipano mais distante da capital, situado no alto sertão, na esquina com a Bahia e Alagoas, finalmente ganhava acesso à telefonia, pouco mais de 100 anos depois de sua invenção. Esse era o nível do desenvolvimento da região.


Passaram-se dez anos e então, aí pelo começo dos anos 90, eu costumava ir regularmente à cidade, passar fins de semana na fazenda de um amigo. Aprendi a reconhecer a região e a caatinga. Mas depois fui embora de Sergipe, não vi mais Canindé, não vi mais caatinga e nem essas coisas de sertão.


Passei pela cidade novamente no começo de 2004, e mencionei o fato neste blog para fazer um agradecimento extemporâneo. Aquele sertão que eu conhecia razoavelmente continuava basicamente o mesmo, apenas com as melhorias naturais do tempo. Ao longo das estradas que hoje compõem a Rota do Sertão, e cortam boa parte do sertão sergipano, as paisagens urbanas se mantinham mais ou menos as mesmas de 1992. Cidade após cidade, a mesma miséria, a mesma sensação de fim de mundo. Claro que naqueles 11, 12 anos a região tinha crescido. Mas era um crescimento inercial, o crescimento natural e mínimo de todo lugar abandonado por Deus. Lembro de estar parado num povoado de Canindé e observar um homem forte passando na rua. Era o meio do dia. Fiquei impressionado ao perceber o que a falta de oportunidades fazia com aquelas pessoas: gente que pela constituição física estava acostumada ao trabalho duro, mas condenada a vagar pelo meio do povoado por falta do que fazer.


Agora vejo um artigo da jornalista Eliane Cantanhêde falando da ascensão do Brasil à posição de sexta potência econômica do mundo. Falando mal, obviamente: ela se pergunta que desenvolvimento é esse, se a pobreza está em todo lugar, e usa o Nordeste como exemplo da miséria que esses governos incompetentes não conseguiram resolver.


É um padrão de comportamento típico de certos setores da imprensa: a notícia é boa, não traz nada negativo, mas há que fazer um pequeno esforço e ver como se pode falar mal; com jeitinho sempre se descobre que é possível fazer um comentário desagradável, e se a gente procurar vai ver que o país continua a mesma merda de antes, na verdade até pior. Jornalistas de oposição — e o termo é usado aqui propositalmente — parecem ter complexo de viralata, e se o copo não estiver completamente cheio tem que estar totalmente vazio.


De qualquer forma, eu não sei o quanto a Cantanhêde conhece o Nordeste, para falar assim com propriedade da evolução da região. Mas ao usá-lo como exemplo para questionar a qualidade e mesmo a veracidade do desenvolvimento brasileiro, ela mostra desconhecer, se não a realidade, a história recente do torrão natal do ex-presidente Lula.


O artigo da Cantanhêde me fez lembrar que passei por Canindé e por aquele povoado novamente há umas duas semanas. E para isso precisei atravessar outras cidades — aquelas mesmas que até cerca de oito anos atrás pareciam paradas no tempo.


Eu não impressiono com muita coisa, porque já me acostumei a fingir que a idade me dá o direito de ter uma atitude blasé diante da vida. Mas eu fiquei bobo, genuinamente embasbacado. Em menos de sete anos construiu-se um mundo completamente diferente. As cidades cresceram absurdamente, a ponto de algumas delas se tornarem praticamente irreconhecíveis para mim. Os sinais de desenvolvimento se espalham por elas: lojas de material agropecuário, redes locais de lojas de móveis — o comércio floresceu de uma maneira que me deixou de boca aberta. É outro lugar. O que antigamente eram variedades indistintas do fim do mundo, hoje são lugares possíveis de se morar. Além disso um detalhe curioso: assentamentos de Sem-Terra — Sergipe tem um dos melhores programas de reforma agrária do país, se não o melhor — estão dando origem a novas cidades.


Muito desse desenvolvimento se deve à ação do governo de Sergipe, que inverteu o mecanismo político ao intervir diretamente nos municípios e levando para o interior um tipo de desenvolvimento que, até pouco tempo atrás, estava restrito à capital. Mas o principal elemento de transformação do sertão foi o Bolsa Família, o Luz para Todos, os investimentos federais.


Ver as cidades do Alto Sertão sergipano me lembrou que costumamos — eu inclusive — falar do Bolsa Família e de outros programas do Governo Federal a partir de um ponto de vista urbano. Se isso não é um erro, agora estou convencido de que é insuficiente. Por mais benefícios que o BF tenha trazido para as cidades médias e grandes, não é nada que se compare ao efeito redentor alcançado nos lugares mais miseráveis como o sertão. É imensurável, mas estapafurdiamente óbvio.


É por isso que é tão estranho o parágrafo final da Cantanhêde:


O que está em pauta não é (só) o ritmo da economia e o complexo equilíbrio entre crescimento mais baixo e inflação debochada, mas principalmente a qualidade do desenvolvimento. Há que se discutir por que, para que e para quem o Brasil assume ares de potência.


Então, dona Cantanhêde, deixa eu explicar uma coisinha para a senhora: o que fez a diferença nesses anos — e agora, depois de ver o que aconteceu com o sertão nesses últimos anos, tenho mais certeza do que nunca — foi justamente a qualidade do desenvolvimento promovido pelos governos Lula e Dilma Rousseff. Não há novidade nisso, mas jornalistas de oposição como a senhora parecem se recusar a entender, não importa quantas vezes isso lhes seja repetido e demonstrado. Foi justamente porque a qualidade do desenvolvimento mudou que nossa economia conseguiu aguentar os trancos da crise econômica mundial e ultrapassar a inglesa. É, aquela mesma que por sua vez continua recitando o ideário que a senhora acha bonito.


O artigo da Eliane Cantanhêde me lembrou algo mais legitimamente nordestino do que suas impressões: um trecho de “Karolina com K”, uma das obras primas de Luiz Gonzaga. Mais especificamente o trecho em que Karolina, doidinha para ir embora do forró e ficar sozinha com o seu sanfoneiro, vê o pessoal indo atrás deles e comenta: “Olha, Gonzaga! Puxa mesmo que a cabrueira vem aí atrás, parece que eles tão querendo botar gosto ruim no nosso amor!”


Karolina não sabe, mas a cabrueira continua agoniada, botando gosto ruim nas coisas que não consegue compreender nem aceitar.

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