quarta-feira, 3 de agosto de 2011

É quase uma autobiografia…

by Iván Marrom no  Chapéu do Sol

Um escritor pode conjeturar um pouco, mas o mais convincente é o real. Se você inventa tudo não dá gosto.


O cara é um Bukowski latino. Trezentas e quarenta e uma páginas do romance Animal Tropical, pela edição da Companhia das Letras; e lê-se em três dias tranquilamente. Pedro Juan Gutiérrez, o escritor cubano (ir)responsável por esse livro, aborda as dicotomias da vida cotidiana numa escrita envolvente e uma história em que não vejo nada de ficção (apesar da advertência inicial afirmar o oposto). Pedro Juan é o próprio protagonista; é o manda-chuva, o centro das atenções. E haja autoafirmação: o tio tem cinquenta anos e não brocha nunca, numa narrativa repleta de obscenidades.

É um livro feito pra ser riscado. A turma do “livro não se risca” vai ter que me perdoar, mas, no estilo gonzo, Pedro Juan consegue observar intempéries sociais e levantar hipóteses conclusivas acerca daquilo que o rodeia. E nada mais importante do que fazer apontamentos para discussões posteriores. É quase um relato antropológico urbano, vivido numa Cuba repleta de particularidades. Romantizações à parte, é uma escola pra literatura; um paraíso pra quem se mete a escritor:
Neste momento não me interessa escrever um romance que começa desse jeito e que conheço de cor. De cabo a rabo. Só tenho de sentar e escrever. Escrever com as tripas e com as entranhas. Jogando tudo no papel. Manchando o papel de sangue e saliva e de merda e urina e muco e lágrimas. Quando o editor recebe esses manuscritos tão porcos, geralmente não entende por que alguém é tão sujo e descuidado. O que acontece é que um romance (…) não é escrito com o cérebro nem com as mãos. É preciso estar disposto a se esfolar. Você se esfola, tira a pele, fica em carne viva, e então se joga no despenhadeiro do romance até o fundo do precipício. Se batendo, se ralando e quebrando os ossos contra as pedras. É o único jeito. Quem não se atraver a fazer assim é melhor deixar o lápis e o papel sobre a mesa e se dedicar a vender tomates ou entrar para o ramo imobiliário.
Dá pra perceber o quanto a literatura mostra horizontes, abre caminhos, estimula ideias. Meu irmão fez quinze anos ontem, dá pra ver como o tempo passa. Todo dia antes de dormir, desde que se alfabetizou, não vai pra cama ser ler alguma coisa – não vai ser um ignorante como o seu irmão mais velho. Vai aprender desde cedo que mídia manipula, que partidário faz politicagem infrutífera, que patrão explora empregado. Vai aprender a ler o Pedro Juan e ter peito pra dizer se é bobajada ou não. Pra mim, pelo menos, não é.
- Tem muita coisa no mundo que não se deve fazer. E se faz. E somos todos cúmplices. Quando você era rica, sabe de onde seu marido tirava dinheiro?
- Dos negócios. Era dinheiro honrado.
- Sabe quantos salários miseráveis ele pagava e a quanta gente obrigava a trabalhar como burros de carga? Ele roubava de algum jeito.
- Acho que não. Era honrado. Uma pessoa muito boa. E está morto. Era um homem decente.
- Nenhum homem de negócios é decente. Nenhum político é decente. Ninguém é decente. O que é decência? Não encha, Agneta. Vou comprar a corrente de quem me vender mais barato! Não importa se roubaram de um turista que exibia seu ouro em um país onde as pessoas passam fome. Fome e anemia! Isso sim é indecente.
Em Animal Tropical, Pedro Juan é Pedro Juan; fala dos romances que escreveu, das mulheres que comeu, dos lugares que trabalhou. É a arrogância do poeta encarnada numa obra literária de primeira linha. É quase uma autobiografia…

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