domingo, 4 de dezembro de 2011

"A autoestima masculina está tão baixa que eles passaram a usar o artifício da dor de cabeça para não ter relações sexuais."


“Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com prazer”, afirma historiadora

"O brasileiro continua profundamente racista, machista e homofóbico"
Rachel Duarte no SUL 21
Sexo. Quais heranças do passado ainda estão presentes na sociedade quando o assunto é sexualidade e erotismo? A historiadora paulista Mary Del Priore, especialista em História do Brasil, conta como foi o rápido processo de transformação do comportamento da sociedade brasileira desde os tempos da censura até os dias de hoje. Autora do livro Histórias Íntimas: Sexualidade e Erotismo na História do Brasil (2010), Mary Del Priore descreve como, desde o século XVII, o sexo é considerado algo sujo, principalmente por influência católica. Apesar de evoluírem para relações mais livres, homens e mulheres ainda sofrem para compreender as mudanças e sua própria sexualidade.
De acordo com a historiadora, ainda que as pessoas digam que convivem melhor hoje com a homossexualidade, boa parte da sociedade vive uma dupla personalidade. “Na vida pública o brasileiro é descolado, gosta de piada suja, paquera a mulher do próximo e topa todas. Mas, na sua vida privada e intimidade, ele continua profundamente racista, machista e homofóbico”, afirma.
Outro aspecto que Mary Del Priore analisa na entrevista ao Sul21 é que as conquistas das mulheres ao longo da história foram positivas sob muitos aspectos, mas que o Brasil ainda careceria de políticas públicas para o gênero feminino. “Temos muitas mulheres nos governos, mas ainda precisamos de ações concretas visando a garantia de direitos”, critica. Ela cobra das próprias mulheres a mudança de postura diante da liberdade sexual para o enfrentamento do que chama de “cachorrice”, um comportamento massificado de mulheres que agem de forma a contribuir com a manutenção de esteriótipos machistas. “É um anacronismo a gente achar que as mulheres de antigamente — por não gozarem tanto quanto as de hoje — eram frustradas”, afirma.
Sul21 – A senhora lançou um livro sobre sexualidade e erotismo na História do Brasil. O quanto a sociedade se modificou e o quanto ainda estão presentes as heranças dos séculos passados?
Mary Del Priore - Sexualidade e erotismo sempre foram assuntos tratados na literatura mundial. Na Ásia, com as poesias eróticas; na Europa, principalmente na Itália e na França, houve grande produção de textos e contos eróticos nos séculos XVII e XVIII. Mas, aqui no Brasil, esta literatura só vai aparecer no final do século XIX. São textos curiosos porque os termos da linguagem chula e os palavrões eram alterados em razão da censura que sempre houve em relação ao assunto, então surgiam coisas engraçadas como ‘apêndice varonil’ ou ‘cetro’. Nada era dito de forma explícita. Sempre tivemos um mal estar para tratar das questões do sexo e do erotismo no Brasil. Estudos sobre a história da sexualidade brasileira são raros. Apareceram, por exemplo, implicitamente em outros trabalhos de autores como Ronaldo Vainfas e do antropólogo baiano Luis Moti. Poucos estudos foram sistemáticos.
"O sexo no Brasil, em razão da presença da Igreja Católica, de outras igrejas e de uma sociedade patriarcal, sempre foi sinônimo de sujeira, de pecado ou de alguma coisa que tinha que ser escondida debaixo do tapete"
Sul21 – Qual é a influência da miscigenação na sexualidade brasileira em termos de formação de padrões estéticos, corporais e sexuais?
Mary Del Priore – É uma história de muita repressão e ao mesmo tempo de muito espaço. O sexo no Brasil, em razão da presença da Igreja Católica, de outras igrejas e de uma sociedade patriarcal, sempre foi sinônimo de sujeira, de pecado ou de alguma coisa que tinha que ser escondida debaixo do tapete. Só podemos pensar em liberação nos anos 70, quando houve um movimento mundial não só de afirmação das minorias (mulheres, gays), mas também movimentos de liberação de costumes amplificados pela pílula anticoncepcional. Foi a época do maio de 68 na França, do movimentohippie nas universidades americanas, da batida pesada do rock com letras que falavam de sexo como “(I Can´t Get No) Satisfaction”, dos Rolling Stones. Então, na época, toda esta discussão mundial começou a chegar à praia brasileiras, contaminando a juventude universitária que se unia no movimento de militância contrária ao governo militar. A liberação sexual se integrou a isso. Então, eu digo que os anos 70 e 80 é quando todos os tabus começaram a ser colocados em xeque por nossa sociedade. Discussões sobre o orgasmo, discussões sobre casais mais igualitários, divórcio. É lógico que a sociedade machista respondeu rapidamente. Tal período de libertação foi quando ocorreram os crimes mais violentos contra as mulheres brasileiras. Isto deu origem ao primeiro movimento feminista intitulado “Quem ama não mata”. Mulheres foram mortas por usarem biquini, por fumar, por assistirem ao seriado Malu Mulher. Tudo era motivo para os homens mostrarem seu machismo frente às mudanças em curso.
Sul21 – No século 21, é possível dizer que sexo ainda é tabu?
Mary Del Priore – As regiões são diferentes. Rio Branco, no Acre, é diferente de Porto Alegre. A periferia do Amapá também não tem nada a ver com a periferia do Rio de Janeiro. O que eu acho interessante e procuro explorar no meu livro é a permanência de determinadas características que são muito antiquadas no que se refere ao sexo. Na vida pública, o brasileiro é descolado, gosta de piada suja, paquera a mulher do próximo e topa todas. Mas, na sua vida privada e intimidade, ele continua profundamente racista, machista e homofóbico. Eu acho lamentável, para um país que é a oitava economia do mundo, o fato de possuir uma cidadania tão partida. As pessoas não podem mais continuar vivendo com estas duas caras. Uma discussão precisará se impor. A legislação que protege as mulheres e garante o casamento homoafetivo ajuda a consolidar certas posições que foram duramente conquistadas. Mas precisamos avançar para uma tolerância maior das diferenças e uma aceitação das sexualidades diferentes.
Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com ter prazer. Tudo isso é reflexo das mudanças muito rápidas e deveria fazer a sociedade brasileira refletir para onde está indo.
"Nas grandes cidades, a religião foi substituída por produtos religiosos"
Sul21 – Qual o limite entre a liberdade e a libertinagem?
Mary Del Priore - Aí é que está. O Brasil sempre foi um país pobre. Até a metade do século XIX, a maior parte das pessoas tinha relações sexuais em esteiras, no chão duro ou em redes. As pessoas não tinham dinheiro para comprar uma cama. O quarto do casal é uma coisa inventada e construída pela privacidade na metade do século XIX, assim como a chegada dos produtos de higiene que permitiram as relações com mais liberdade. Este processo de construção da privacidade foi completamente detonado com a chegada da era tecnológica. Hoje, com a aparelhagem eletrônica, computadores, câmeras, a internet, qualquer pessoa, mesmo na sua “privacidade”, pode se dar a ver. Qualquer moça pode mostrar sua nudez, se prostituir via internet. Temos o aumento da pedofilia e prostituição na internet. O mundo da telinha, seja ela do computador ou do celular, abriu uma possibilidade enorme para a pessoa ficar mostrando aquilo que elas têm de mais privado. É muito questionável a passagem desta liberdade para a chamada libertinagem. Eu diria que o que falta é a consciência das pessoas sobre seu próprio corpo e sua própria sexualidade. As transformações ocorreram de forma muito rápida. As mulheres foram drenadas para dentro do mercado de trabalho, associando trabalho com liberdade financeira, pílula, prazer. Foram bombardeadas por uma série de imagens em revistas e na televisão. Criou-se a ideia de que elas tem que gozar. Gozar virou uma obrigação que não tem nada a ver com ter prazer. Tudo isso é reflexo das mudanças muito rápidas e deveria fazer a sociedade brasileira refletir para onde está indo. Falta um momento de pausa para reflexão.
Sul21 – Como alcançar isto diante da complexidade que ainda é enfrentar o tema da sexualidade no Brasil? Qual é o papel do estado neste processo?
Mary Del Priore – Apesar de termos mulheres no poder, falta avançar nas políticas de valorização do gênero feminino. Faltam políticas de amparo da gravidez na adolescência, para crianças abandonadas, para mulheres que trabalham. Temos muitas mulheres na política e poucas políticas de gênero. Um exemplo grosseiro do que eu estou dizendo, é a iniciativa da ministra que tentou impedir a propaganda com a Gisele Bündchen. Ela é uma belíssima modelo, não tenho nada contra ela. Mas, uma propaganda destas na França, em que movimentos de mulheres são muito bem organizados, jamais iria ao ar. Eu acho que a ministra tinha toda a razão de retirar do ar este anúncio na medida em que ele “coisifica” a mulher brasileira e reitera que através do sexo se consegue tudo. Esta associação permanente da mulher como desfrute e com disponibilidade sexual tem que ser combatida.
Sul21 – A mudança comportamental da sociedade contemporânea sofre a influência da mídia, como a senhora mesmo salienta. O quanto mudou desde as chanchadas e contribuições de nomes como Nelson Rodrigues — os quais falavam de erotismo indiretamente, sem serem explícitos como as produções atuais — até os filmes pornográficos, hoje amplamente acessíveis?
Mary Del Priore – Os teóricos procuram matizar tudo isso.  Há quem defenda que a pornografia não é pornográfica. Há também quem defenda que a mídia não dita, ela apenas representa os anseios da sociedade, mas na verdade nós estamos num país de analfabetos, de pessoas muito pouco educadas. Não sou eu que digo isto. Há pesquisas internacionais que apontam o atraso do país em termos educacionais, isto não é novidade nenhuma. E é óbvio que com um baixo nível de escolaridade, o impacto da imagem é muito maior aqui do que em países em que a educação permite o discernimento sobre o que está sendo visto. A imagem acaba modelando comportamentos. Onde há educação, as pessoas se aproximam das informações de forma crítica. O que observamos, por exemplo, é que frente a esta “Cachorrice” — que é o movimento das meninas que frequentam os bailes funks e transam com todos e engravidam sem medir as conseqüências — , há o movimento das “Princesas”, originário das igrejas protestantes, que são moças querem casar virgem e valorizam a castidade. Haverá o momento em que iremos ver mulheres se organizando para  serem identificadas como algo além do que um pedaço de carne.
Sul21 – Qual o peso da igreja na sexualidade dos brasileiros?
Mary Del Priore – De novo temos que considerar as características das diferentes regiões. Nas áreas rurais, por exemplo, as religiões ainda ditam as normas, a igreja organiza a sociedade. As comunidades rurais tendem a ser controladas de forma mais próxima. É difícil que um adultério não seja logo conhecido ou que um gay não seja logo reconhecido e venha ter problemas. Tudo que “foge a regra” é mais fácil de perceber. Nas grandes cidades não. Nelas a religião assume outras formas. A religião institucional foi substituída por produtos religiosos. Shows, cultos, padre que canta e lança CD. Chamo isto de o “difuso religioso” que tomou conta das grandes capitais.
A autoestima masculina está tão baixa que eles passaram a usar o artifício da dor de cabeça para não ter relações sexuais.
Sul21 – Mas o modo como a igreja vê o matrimônio ainda castra e condiciona?
A capa do livro de Mary del Priore
Mary Del Priore – No meu livro, eu discorro sobre como o casamento é concebido pela Igreja Católica nos séculos XII e XIII. Ele acaba sendo uma espécie de não-lugar do erotismo. É apenas o lugar de encontro para a procriação. O mais importante era a família ter filhos. O sexo de lazer e diversão ficava para os homens no bordel. Eu lembro que é um anacronismo a gente achar que as mulheres da época, por não gozarem tanto quanto as de hoje, eram frustradas. Muito pelo contrário, as mulheres tinham outros projetos. A agenda delas era outra. Elas ficavam muito satisfeitas em criarem seus filhos, em serem mães de família, em terem poder de mando dentro de suas casas. O projeto feminino, até os anos 50, foi muito diferente do que o nosso hoje. Hoje é ter carreira, ascensão, é ganhar dinheiro. Nós estamos num percurso muito diferente. Então, enquanto o casamento era o lugar para a procriação, a igreja tinha enorme influência, sobretudo conduzindo os casais na forma estes deveriam se relacionar sexualmente. O sexo deveria ser breve, objetivo. Uma vez que a mulher engravidasse eram suspensas as relações sexuais. Durante a amamentação também não se podia ter relações sexuais. A partir do século XIX, a medicina também passa a exercer um papel importante na sexualidade, tentando associar a família feliz à família saudável. A família saudável era aquela que tinha filhos saudáveis, bem constituídos. Por isso, também se recomendava aos casais que não perdessem tanto tempo rolando na cama durante as relações, porque isso enfraqueceria os corpos. Já o século XX é o da descoberta do corpo, do esporte, da modificação da indumentária, da entrada da mulher no mercado de trabalho, do aparecimento da lingerie. Claro que estas questões impactam no casamento. Discussões de relações mais igualitárias começam a se fazer presentes. À medida que a mulher foi ganhando dinheiro, passou a controlar a sua procriação e foi em busca do prazer. Este se tornou um tema novo para os casais. Hoje as coisas estão bastante diversificadas também. Os homens também alegam estar com dor de cabeça, o que antes eram coisas das mulheres. Os homens estão sentindo o impacto destas transformações. A autoestima masculina está tão baixa que eles passaram a usar o artifício da dor de cabeça para não ter relações sexuais.
(risos)
Sul21 – O comportamento na era pós-moderna ou contemporânea caminha para termos uma futura sociedade poligâmica e bissexual?
Mary Del Priore – Não. No Brasil ainda se casa muito. O casamento ainda é uma instituição importante. O número de divórcios aumentou, mas ainda há a preocupação em constituir famílias, em se unir no matrimônio. A família ainda é uma instituição muito valorizada.  As relações parentais mudaram muito. As mulheres, por estarem no mercado de trabalho, passaram a ter filhos cada vez mais tarde. Então, quando eles vêm, são extremamente valorizados. O número de filhos caiu brutalmente para uma média de dois por família, não de seis como na década de 60. Tudo isso leva a uma valorização da vida do casal monoparental. Portanto, as coisas mudaram. O que é interessante, segundo a pesquisa do IBGE, é que homens e mulheres são realmente sexos opostos, no sentido de que eles definições muito diversas a respeito do casamento. Para o homem brasileiro, o casamento é o momento de constituir família. Portanto, brigas ou infidelidades não causam tantos arranhões. Para as mulheres é uma questão de amor e sobretudo o desejo de viver uma paixão. Quando elas não veem cumprida esta agenda, querem mudar de parceiro. Por isso, temos aumento de casamentos e também de divórcios.
Podemos terminar como na Alemanha, onde na maior parte dos domicílios vivem pessoas sozinhas. Não se precisa do outro. Você faz sexo sozinho, se comunicando e masturbando através da telinha.
Sul21 – Segundo dados do IBGE, as pessoas casam e se separam cada vez mais. Isto não seria uma espécie de poligamia?
Mary Del Priore - Poligamia eu acho que não. Mas eu até encerro meu livro dizendo que esta espetacularização do sexo trazida pela internet — em que se pode fazer sexo virtual, ver sexo na telinha, sozinho diante da mesma — , aponta para um individualismo crescente das relações. Podemos ficar como a Alemanha, onde na maior parte dos domicílios vivem pessoas sozinhas. Não se precisa do outro. Você faz sexo sozinho, se comunicando e masturbando através da telinha. Então, há autores que defendem que esta é a nossa tendência também. E há outros, mais liberais, que dizem que isto são experiências como outras quaisquer. Eu costumo dizer que, como historiadora, eu só posso olhar para o retrovisor. Eu não consigo projetar nada, isto é para os sociólogos. Mas, diante destas visões todas, acho que ninguém ousa dizer o que será daqui 30 anos.
Sul21 –  A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a união homoafetiva e o aumento crescente de gays assumidos causam reações violentas no país. Parece que a homossexualidade passou a existir só agora.
Mary Del Priore – A história da homossexualidade no Brasil é horrível. Os casais homossexuais sempre sofreram brutalmente. O jovem homossexual, seja homem ou mulher, sofre muito com a segregação familiar. Se olharmos para trás, veremos que esta perseguição começa no século XVI, com as visitas da Santa Inquisição ao Brasil. Lá, já perseguiam os sodomitas. Eles perseguiam mais os homens do que as mulheres. Eles achavam que aquilo que as mulheres podiam fazer entre elas, como não haveria desperdício de sêmen, não era um pecado tão grave, diferentemente das relações entre homens. Toda a medicina do século XIX vai perseguir o que foi chamado de “missexuais”. Vai definir que estas pessoas são doentes. Vemos isto inclusive nos manuais de educação sexual que são publicados durante o governo Getúlio Vargas. A intenção era extirpar os homossexuais do Brasil. A obsessão pela virilidade torna o homossexual um bode expiatório. Como se não bastasse, o anúncio da chegada da Aids no Brasil, nos anos 80, foi feito no programa Fantástico, com o locutor, de voz fúnebre, anunciando a doença como uma doença de gays. Até os anos 80, os gays foram sempre associados a coisas terríveis das quais eles não tinham a menor culpa. Foi algo desumano e que só se explica pelo profundo machismo da nossa sociedade.

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