Por Gilberto Felisberto Vasconcellos
Leonel Brizola não gostava do “ismo” brizolismo, considerava-o excessivamente personificado e personalizado, ao contrário de seus detratores (e foram muitos tanto na direita quanto na esquerda) que tripudiavam o “personalismo” dele, líder egocêntrico, personalista, narcisista, individualista, ou senão centralizador tal qual Lênin e Trotsky. Essa calúnia foi repetida durante décadas, muita gente nas universidades e nos sindicatos acreditou que ele fosse um homem neuroticamente obcecado pelo poder, fazendo de tudo para lá chegar, pouco importando por quais meios, se espúrios, imorais e ignominiosos.
Curiosamente a maior parte de sua vida viveu fora do poder e, durante muito tempo, exilado e perseguido. A maledicência a fim de detratá-lo não dava margem a que se perguntasse acerca do mais importante: por que e para que queria o poder? Nos cursos de ciências sociais diziam-no que não estava politicamente vinculado a nenhuma classe social, ora tido como populista, ora bonapartista, ora intersticial, mas foi um homem público que desafiou a própria morte com coragem e intrepidez pelo destino da pátria e a sorte do povo.
Leonel Brizola se identificou politicamente com o trabalhismo, reportando-se ao nome de Getúlio Vargas na história do Brasil e, antes dele, ao mártir Tiradentes. Não abdicou nunca desta filiação, mantendo-a firme no caminho do socialismo, convicto de que o capital não representa solução para a humanidade. Em sua palavra e ação, a centralidade do trabalho indigitava a concepção originada de Marx e Engels (como a do jovem Getúlio procedia de Saint-Simon), ou seja: o trabalho criador de riqueza, o homem se fazendo pelo trabalho, a história do homem como a história do trabalho.
O Trabalho de Quem Não Trabalha
A notória repulsa de Leonel Brizola à monarquia é que ela esteve associada ao latifúndio e à escravidão. Todavia, o problema hoje é que a direita, ainda que de modo transverso e caricato, se apropriou da noção de trabalho. Antonio Ermínio de Moraes se define como trabalhador, George Soros alardeia todo santo dia que começa a trabalhar às cinco horas da manhã, José Serra se vê como um infatigável trabalhador desde quando estava no útero da senhora sua mãe.
A força de trabalho tornou-se objeto de falsificação, tal como tudo no capitalismo, embora sem explorar a força de trabalho nenhum capitalista ganha nada, não obtém aquilo que é o motivo de sua existência: o lucro.
Lembro Samir Amin dando o recado lá da África: a lógica do capitalismo é expandir o capital, e não promover o desenvolvimento. O que move o capitalismo é o lucro, e não a renda distribuída. O Banco Mundial é que juntou capitalismo com desenvolvimento, assim como o neoliberalismo mistifica o laço indissolúvel entre democracia e capitalismo. É mais um logro burguês afirmar que é possível o pleno emprego. O capitalismo é contra a democracia. O desespero do desemprego é um problema para os que estão desempregados, e não para os capitalistas. O desemprego (a existência de “exército industrial de reserva” que divide a classe operária) favorece os interesses dos capitalistas. É ilusória ou demagógica a vontade do capitalista em eliminar o desemprego.
O desemprego dá lucro ao capitalista. Como dizia Darcy Ribeiro, a massa excedentária é um componente estrutural do capitalismo e ineliminável, tal qual o subdesenvolvimento Há jovens deserdados que estarão condenados a não ter nunca na vida emprego.
Leonel Brizola e Darcy Ribeiro, leitores do Manifesto Comunista escrito pelos jovens Marx e Engels, estavam de olho na força de trabalho que não consegue assalariar-se, compelida a se virar no subemprego, nas formas precárias, incertas e perigosas do troco descolado, como acontece no dia a dia do Rio de Janeiro.
A ciência sobre o capitalismo não foi feita por nenhum teórico capitalista, mas pelo comunista Karl Marx, que julgava a palavra “proletário” mais incisiva do que “trabalhador”. Engels explicou que o proletariado é a moderna classe dos trabalhadores assalariados.
Os partidos políticos de esquerda, ou supostamente de esquerda, resolveram adotar a palavra “trabalhador”, o que correspondeu à substituição de “burguesia” por “empresariado”. Fato é que do nosso léxico político desapareceu a palavra “proletariado”. A última pessoa que, se não me engano, remou contra essa maré lingüística, foi o cineasta Glauber Rocha em sua famosa autodefinição: “eu sou um proletário intelectual”.
Nos discursos de Leonel Brizola, logo na seqüência dos primeiros acordes do hino nacional, invariavelmente o vocativo era chamado: “povo brasileiro”. Mudam-se os tempos, muda-se a linguagem. O pensamento não está apartado da linguagem. O pensamento se revela na linguagem. Basta reparar a dicção, a pronúncia de um político tucano abrindo a boca: a fala dele é inconfundivelmente a da classe dominante. A linguagem, tal qual o salário, é luta de classes.
Cidadão Miserável e Cidadão Milionário
Corriqueiro é ouvir a palavra “cidadania” por tudo quanto é canto. Essa palavra “cidadania”, que estava lá no armário burguês da revolução francesa, de repente foi posta em circulação na década de 80 pelas ONGs que se espalharam por toda a América Latina.
Segundo o marxista James Petras, as ONGs foram criadas pelo neoliberalismo, a ideologia da globalização imperialista do capital, com o objetivo de atacar o “estatismo” e as políticas públicas, substituindo-as por uma solidariedade que é falaciosa e aparente.
A aparência do solidarismo trazida pela caridade das ONGs despolitiza e desmobiliza o pobre explorado. A retórica da “cidadania” é moral e tem por objetivo mostrar que a exploração econômica não existe como causa objetiva da pobreza. O pobre deve ter fé no processo eleitoral argentário, deve votar sob a influência do monopólio da mídia. Essas ONGs, bando de gafanhotos endolarados, apareceram para nos ensinar o que é “cidadania”. Assim, começamos a ouvir “cidadania” para cá, “cidadania” para lá, e sempre como alguma distante, alheia e contraposta ao Estado. Tal qual sucedeu com o projeto Camelot da CIA durante a década de 60, foi colocada uma dinheirama nas ONGs a fim de cooptar e seduzir muita gente com a palavra de ordem: “cidadania já”!
Privatizando as empresas estatais, o neoliberalismo precisava se fazer popular com as ONGs da “cidadania”. Na década de 80 o neoliberalismo usou cada vez mais a acústica “cidadã”. Como dizia o maestro Villa Lobos, começamos a papagaiar a palavra “cidadania” por todos os rincões deste país, na mídia, no parlamento, na universidade e até nas conversas das donas de casa. Antes o que se ouvia (também vinda do exterior) era a palavra “modernidade” ou senão “globalização”.
A palavra “cidadania”, o xodó do departamento lingüístico do World Bank, que já foi presidido pelo sádico Roberto Mc Namara durante a guerra do Vietnã, tornou-se um lugar comum dos partidos políticos. As ONGs funcionaram como um eficaz instrumento neoliberal. À semelhança dos pardais que enfeitaram de cocô nossas cidades, importados de Paris, a palavra “cidadania” veio com as ONGs financiadas pelo Banco Mundial. Dentro desse pacote do imperialismo a “cidadania” se fez verbo. A cidadania dos políticos e dos intelectuais, o verbo do poder a partir da década de 80, segundo James Petras, o autor de Neoliberalism and Class Conflict in Latin America (1997).
ONGs, Instrumento do Neoliberalismo
Foi diabólica a estratégia das ONGs por toda a América Latina. “Cidadania” e “sociedade civil” (ocupando a esquerda que discutia se a “sociedade civil” provém dos textos de Hegel ou de Gramsci), enquanto por cima com o “capitalismo da flexibilização” (a cumplicidade entre o Estado e o capital globalizado), o Banco Mundial e as corporações multinacionais faziam a festa “anti-estatista” do livre mercado com as privatizações internacionais, sendo a mais criminosa a da Vale do Rio Doce, “o maior crime do século”, no dizer de Bautista Vidal. Sempre coniventes com o salário baixo da população, os ongueiros (empolgados pela “cidadania” desatrelada do Estado) conduziam o programa de “auto-ajuda” dos pobres e de “educação popular”, ocultando a classe social, o nacionalismo e o imperialismo.
A ONG colocou a “vontade” (tudo se resume em querer) no lugar da classe social como força política. A luta de classes passou a ser uma invenção de ressentidos e de gente que não está bem com a vida tal qual ela é mostrada pela telenovela.
Nas ONGs o conceito econômico de capitalismo converte-se em conceito moral, daí o estribilho “ética na política”, que corresponde à mistificação de que a pobreza, o mar de pobres, não é senão o resultado de erros (que poderiam ser evitados) cometidos por uma administração “incompetente”, palavra essa que se espraiou como uma epidemia revivendo o espírito da UDN.
A ONG afirmou o lado caridoso, compadecido, assistencialista e comunitário do neoliberalismo, a retórica sobre os “excluídos”, “as linhas de pobreza”, os racialmente discriminados e a igualdade de gênero sexual, como se o racismo na historia da humanidade não tivesse nada a ver com o capitalismo. A política da ação voluntária em âmbito local passou a ser sinônimo de realismo e de “transparência” social. Os dólares do Banco de Desenvolvimento Inter-americano e o Banco Mundial cacificavam as micro-empresas de intelectuais e políticos cooptados pela agenda neoliberal.
O discurso das ONGs, a ideologia dominante das multinacionais dominantes, é o discurso do poder econômico e cultural nas últimas décadas. Foi isso o que estruturou os programas de pós-graduação nas universidades. O discurso sobre a pobreza – a referência lacrimosa e emocional aos “excluídos” – separou e inocentou o setor rico da sociedade com a idéia da auto-exploração do pobre, tal qual o pregão pentecostal dos evangélicos sobre o rico que vai para o céu. A “auto-ajuda” das igrejas universais consagrou o pastor barulhento como o novo tipo de político que se legitima cada vez mais no desejo dos pobres e despossuídos. É por isso que o mote da “cidadania” foi o dispositivo lingüístico usado pelos ongueiros contra o conceito de luta de classes do marxismo. O manifesto das ONGs inverte o de Marx e Engels: cidadãos e excluídos uní-vos!
Sopão Pós-Moderno
O assistencialismo ongueiro é tão despolitizante quanto o pós-modernismo, a mais recente ideologia do imperialismo na área da cultura. O pós-modernismo divulga que a história acabou, que não há outra alternativa senão o capitalismo, que a “cidadania globalizada” é a realidade do século XXI com a “sociedade civil internacional”, que o marxismo está morto (a queda da União Soviética é identificada com o fim do socialismo) que nada é possível ser feito politicamente em termos nacionais na era da globalização, que a classe social é um conceito obsoleto, o qual deve ser substituído pela idéia de “identidade” e de gênero, ou seja, o que conta é a condição de lésbica, de gay, de afrodescendente.
Assim, o capitalismo deixa de ser um sistema dividido antagonicamente em classes sociais, a política é enfocada pelo prisma de um embate de celebridades, a exemplo de Fernando Gabeira no Rio de Janeiro. O pós-modernismo é repercutido pelo PSDB e por toda a mídia, é a ideologia de que o poder é difuso, fluido, volátil, não tem base material e econômica, tampouco um ponto central e definido. Tudo se resume a uma questão de “lifestyle” (o estilo de vida que a pessoa leva), e não de classe social.
Nas ciências humanas tudo virou relativo e pluralista, não há mais causas nos fenômenos sociais e políticos. O Banco Mundial fez a cabeça dos professores e estudantes das universidades, os quais dirão amém ao triunfalismo capitalista. A universidade, o que havia de esquerda na universidade, se neoliberalizou com a receita pós-moderna. A ênfase da política foi colocada exclusivamente nas eleições, ou no “cretinismo parlamentar”, como dizia Karl Marx. É a urna eleitoral, e não a mobilização popular, que decide os rumos da sociedade. Com educação (um, dois, três milhões de lepitópis nas favelas) o subdesenvolvimento será eliminado, o imperialismo econômica e políticamente não impede o país de ser passado a limpo. A educação é o motor da história, segundo o Banco Mundial: a educação é a principal alavanca da “cidadania”. E isso nada tem a ver com a estrutura social e econômica do capitalismo que autoperpetua o desenvolvimento do subdesenvolvimento. A agenda do Banco Mundial é suprimir a perspectiva do socialismo, colocando em seu lugar a meta da educação. Não será surpreendente se, mais dia ou menos dia, esse organismo do capital internacional vir a se apropriar do programa educacional dos Cieps.
O discurso da “cidadania” usa e abusa da expressão “vontade política” (outro clichê do Banco Mundial), mas na verdade consagra a impotência política. Lembro Darcy Ribeiro exilado em Montevidéu no ano de 1969, dez anos antes da fundação do PDT, preocupado em amalgamar o nacionalismo com o marxismo, a fim de elaborar um projeto político para ganhar o apoio da massa da população. Vamos, dizia ele, passar o Brasil a limpo. Sabemos que isso lamentavelmente não foi conseguido depois de sua volta do exílio em 1979.
Obsolescência do Trabalhismo
Darcy Ribeiro no final da vida se dizia um homem fracassado, que fracassou em quase todos os seus belos e grandiosos projetos. A questão colocada hoje é a seguinte: estava equivocado o diagnóstico histórico feito por Darcy Ribeiro e Leonel Brizola sobre o Brasil e a América Latina? Claro que, para responder a isso, é preciso saber e estudar em que consiste esse interpretação elaborada desde os anos 50, pois não é com amnésia histórica que se lida com os problemas da atualidade. Eles acertaram em um ponto básico: o subdesenvolvimento (atraso, fome, miséria, injustiça, promiscuidade, violência) irá continuar com o vínculo espoliativo mantido pelo intercâmbio internacional do sistema capitalista.
O que há na conjuntura atual do capitalismo que não foi mentalizado por Darcy e Brizola? Mudou substancialmente alguma coisa na relação entre países atrasados e avançados? Com a didática de tarimbado professor, Darcy Ribeiro dizia que a direção multinacional da sociedade latinoamericana continuou a questão-chave, principalmente depois de 1945, que é o ponto de inflexão na história do imperialismo. Com United Fruit na Guatemala plantavam-se bananas, hoje são plantadas indústrias estrangeiras, mas a rapinância continua a mesma, com o detalhe de que Darcy e Brizola denunciaram a financeirização da acumulação de capital, ou seja, o capitalismo cybervideofinanceiro aumenta ainda mais o atraso histórico da América Latina.
O colapso econômico do neoliberalismo não quer dizer no entanto que houve o colapso ideológico da hegemonia neoliberal. Esta continua firme e forte em todos os partidos políticos. A razão é pragmática e cínica. Principal agência das multinacionais, a televisão não perde as eleições. Portanto, dizem as vozes pós-modernas, o futuro do trabalhismo está na televisão do futuro. É este o conteúdo adaptacionista do “neotrabalhismo”, que apresenta Leonel Brizola como se ele tivesse sido um político telefóbico.
Com a ênfase abstrata e demagógica na educação, retroagindo às formulações elaboradas por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, o “neotrabalhismo” subtrai a centralidade do trabalho superexplorado das massas, assim como desconecta-o do atraso nacional que não é mais decorrência espoliativa imperialista, ou seja, é o adeus à concepção sobre as “perdas internacionais da nossa economia”.
Os intelectuais orgânicos das ONGs, que colocam a “cidadania” no lugar da crítica ao capitalismo, propagam pelas universidades que o legado anacrônico de Darcy Ribeiro e Leonel Brizola deveria ser jogado no lixo da história. Se o diagnóstico de ambos estivesse correto, eles teriam alcançado o poder pelo voto, como se a derrota eleitoral fosse indício de inconsistência teórica. Esse argumento é uma falácia com má fé porque pressupõe que triunfar na política, que é conflito de interesses materiais, seja o resultado da razão e de argumentos. Convenhamos que Stalin não triunfou na União Soviética porque pensou melhor a realidade russa do que Trotsky.
Luta de Classes
“Briga de foice no escuro”, assim definiu Leonel Brizola a política, isto é, a luta de classes. Leonel Brizola morreu com seu cérebro (sentimentalismo é dizer que ele vive), mas perdura o seu pensamento e o que deixou como exemplo público, inclusive a relação do trabalhismo brizolista com as classes sociais, ou seja, com as classes subalternas. Leonel Brizola nasceu politicamente vinculado à classe operária na Rio Grande do Sul. Mas o que era o heteródito PTB e a classe operária até 1964? É necessário perguntar pela relação partido político e classe social. Depois de 1979 frequentemente se ouvia que o PDT, cujos quadros eram preenchidos pela pequena burguesia, não era um partido da classe operária. Seu foco de atenção ou de persuasão era a massa marginalizada da população, os desempregados e subempregados. Por outro lado, argumentava Darcy Ribeiro em um país ocupado pelo imperialismo, não existe uma classe burguesa independente que tenha a vocação de ser uma classe (situada no topo da sociedade) a fim de exercer o comando econômico e político.
A revitalização do brizolismo passa necessariamente pela crítica marxista ao capital monopolista. O renascimento do PDT, tal qual este existiu como referência essencial na sociedade brasileira sob a liderança de Leonel Brizola, não poderá se efetivar sem que se coloque o socialismo no cerne de seu projeto político para a América Latina. Essa é a única maneira do PDT não tornar-se cativo da ideologia do Banco Mundial, para quem o domínio das corporações multinacionais (com o binômio democracia e educação) irá eliminar o subdesenvolvimento e o atraso da sociedade brasileira.
O PDT está compelido a avançar caminhando em direção ao que foi concebido no passado acerca da “espoliação internacional”, isto é, o subdesenvolvimento como sendo endêmico ao capitalismo no Terceiro Mundo. Por causa do processo social cada vez mais antagonicamente polarizado, brizolismo e marxismo devem se amalgamar em uma unidade orgânica, tal qual a política anti-colonialista de Hugo Chávez realizada na Venezuela juntando Bolívar e Marx.
Gilberto Felisberto Vasconcellos é sociólogo, jornalista e escritor.
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