Carta Aberta à companheira Dilma Roussef
Por Izaías Almada
Estimada companheira Dilma Roussef:
Aproximam-se as eleições de outubro. Passada a overdose do futebol, o Brasil mergulha nas águas turbulentas de uma campanha eleitoral com características como há algum tempo não se viam na nossa história, trazendo lembranças – para os que viveram como eu, ainda adolescentes – as disputadíssimas eleições de 1955 e 1960, onde o viés ideológico permeava os votos daqueles que iriam escolher entre o progresso do país ou a estagnação e o atraso. O Brasil de hoje é bem diferente, eu sei, mas ainda com inúmeros problemas de autodeterminação, de soberania, de construção de uma infraestrutura mais produtiva, consistente e autônoma, geradora de mais empregos e distribuição de sua riqueza de maneira mais equânime e solidária. Organização de um mercado interno sólido, duradouro. Problemas que permanecem ainda em nossos dias.
Em finais de 2005 fui conhecer a Venezuela. E o fiz tomado de grande curiosidade pela Revolução Bolivariana, cuja visibilidade institucional se estabeleceu em 1998, com a eleição de Hugo Chávez à Presidência da República, mas iniciada com a desastrosa política neoliberal imposta ao país pelo governo de Carlos Andrés Perez, fato já aceito e incorporado à história econômica venezuelana.
Resolvi visitar aquele país irmão e sentir um pouco a temperatura do que ali se passava. Ver de perto como oposição e governo se enfrentavam no dia a dia – e já lá se vão quase cinco anos. Entre os vários fatores que suscitaram em mim essa curiosidade, devo confessar que parte importante deles veio no caudal do linchamento da esquerda brasileira sofrido nesse mesmo ano de 2005, tão logo o ínclito e honrado deputado Roberto Jéferson, valoroso combatente da e pela democracia representativa tupiniquim, contrariado em seu despojamento e honestidade patriótica resolveu, segundo ele, botar a boca no trombone e denunciar irregularidades na vida política nacional, em particular na atuação parlamentar do Partido dos Trabalhadores.
Tal fato, de conhecimento geral, onde se jogou muita areia no ventilador, independentemente dos envolvidos e das denúncias, algumas delas sem comprovação até o presente, foi sobejamente aproveitado por boa parte da oposição nacional que, na voz do também honrado e ínclito senador Bornhausen (da turma dos brancos de olhos azuis), deu o mote: “temos que eliminar essa gente da política brasileira”, ou qualquer coisa nesse teor. Embora sem filiação partidária, senti-me atingido pela bravata.
Eu não desconfiava, companheira Dilma Roussef, àquela altura, que viria ao de cima, como acontece sazonalmente no Brasil, mais um jogo sujo de política institucional, com o confronto pelo poder assumindo contornos mais nítidos e não menos distantes, como também não menos violentos, de muitos dos confrontos ideológicos dos anos 60, anos em meio aos quais me formei, como você, companheira, política e profissionalmente, na mesma Belo Horizonte que nos viu nascer. Com ingredientes, fatos e personagens diferentes, é claro.
Ignorando a privataria, o entreguismo de muitas de nossas empresas a preço de banana, e muitas das seqüelas econômicas e sociais daí advindas do período de FHC e não só, imediatamente anterior, o traumático episódio acima referido fez sair da toca, de uma vez por todas, a nova direita do país que, além de ter se agarrado na defesa de uma prática econômica neoliberal, concentradora de riquezas e privatizadora, obediente a determinações e diretrizes vindas de fora, ferindo a soberania do Brasil, mostrou também as garras de um neo-racismo (sempre dissimulado em nossa história pátria) contra negros, mulatos, nordestinos, indígenas, enfim, contra a maioria pobre do povo brasileiro, ainda subnutrida, subempregada, analfabeta ou semi-analfabeta, essa gente que muitas vezes “só sentia o gosto de carne”, como dizia Ulisses Guimarães, “quando mordia a própria língua”. E mantendo, por outro lado, o ancestral preconceito contra as mulheres, numa demonstração conservadora e inequívoca de um machismo mal resolvido, como ilustra o triste e recente episódio envolvendo um jogador de futebol do clube de maior torcida do país.
Com distintos objetivos, entre eles o de identificar a política do atual governo e a corrupção como sendo sinônimos, o linchamento em questão acima citado, ultrapassou o principal alvo que era o PT e espraiou-se sobre quase toda a esquerda que, atônita e já agora atomizada e desacostumada aos grandes embates de rua de passado não tão distante e – mais do que isso – presa muitas vezes aos debates acadêmicos entre quatro paredes ou em algumas publicações aqui e ali, não conseguiu reagir à altura aos ataques a que foi submetida. Presa, em muitos casos, a um viés moralista, compactuou com o prejulgamento dos caçados, esquecendo-se de quem eram os caçadores e os objetivos aos quais desejavam atingir.
Ou, o que é também de se lastimar, não encontrou os argumentos mais coerentes para isso, até porque muitos de seus antigos quadros se renderam à propaganda neoliberal e passaram para o campo adversário. Pior: fragmentou-se ainda mais e, vítima de algum pânico por não saber responder com vigor aos ataques, não conseguiu até o momento estabelecer uma estratégia para unir os vários movimentos sociais que lutam para superar as enormes mazelas impostas ao país pelo capitalismo globalizado em seus anos e anos de domínio e exploração. União desejável, principalmente agora nos dois últimos anos, com o eclodir e o desenvolvimento da crise econômica mundial iniciada em 2008. Afinal, não se muda um país em 24 horas ou mesmo oito anos…
Ao contrário, companheira Dilma, a esquerda tem muitas vezes se dividido em acusações – em particular nos períodos de campanhas eleitorais – e disputas sobre quem é verdadeiramente de esquerda, caindo na armadilha da chantagem mediática e mergulhando no caudal de desatinos propostos pela direita alojada no Congresso Nacional e nos grandes órgãos de comunicação social, jornais, revistas semanais e canais de televisão. Vítima dessa tribuna corporativa de informação, a democracia é exercida como uma figura de retórica e de mão única, muitas vezes valendo-se de um poder judiciário que deixa à mostra o seu caráter classista.
Não acuso ninguém em particular. Não é minha intenção, ao escrever esta carta, entrar nesse jogo de acusações e/ou desconfianças. Ao contrário, a hora é de união. Cada um de nós terá a oportunidade de refletir e sentir, nas questões de fundo, se o país está ou não, de fato, à procura de sua emancipação e soberania. Se o eixo da herança colonial, conservadora, aculturada e entreguista, está se deslocando para mãos mais responsáveis e genuinamente brasileiras ou não, é o desafio a enfrentar no momento. E o sentimento de união pede-nos para trilhar o caminho mais sensato que nos leve a conseguir esse objetivo.
A inércia, a dúvida e a insegurança ideológica, em política, costumam se constituir em grandes aliadas da manutenção do ‘status quo’. Mais do que isso: a ausência de críticas construtivas ou mesmo a crítica generalizada a propostas de transformação ligadas ao país real e não aos alfarrábios embolorados de algumas bibliotecas ou a subjetividades de programas político/partidários, provoca erros de avaliação e excita o oportunismo e ao infantilismo de esquerda, substituindo a realidade por aquilo que gostaríamos que ela fosse. Comportamento que, invariavelmente, leva ao dogmatismo irrefletido ou ao pessimismo irresponsável.
Por vezes, e a companheira sabe disso tão bem ou melhor do que eu, por toda sua militância política e pela experiência adquirida nos vários cargos em que atuou, a falta de visão a médio e longo prazo de uma luta comum à maioria da sociedade brasileira, possibilitou até agora, a abertura de enormes atalhos por onde vamos nos perdendo em análises e discussões, muitas delas estéreis, na criação de novos partidos políticos, novas centrais sindicais, novos movimentos sociais, cada um deles, por vezes, levantando a bandeira de uma irrepreensível pureza ideológica, louvável sob vários aspectos, mas de uma prática de escassos resultados políticos e/ou legitimamente progressistas. Sei que nos últimos oito anos muito já se fez para mudar o fiel da balança. É preciso reconhecer, mas – acima de tudo – é preciso avançar.
Contudo, companheira Dilma, nesse momento a sua responsabilidade é enorme e sei que tem consciência disso. Não é somente uma responsabilidade partidária, ideológica, mas uma responsabilidade com toda a nação. Fosse de outra maneira e não estaria disputando a presidência da república. Sua vitória nas eleições de outubro não deve expressar apenas a continuação do atual governo, mas o avançar em algumas questões essenciais para solidificar no país o deslocamento do eixo transformador da nossa sociedade, afastando-o da Casa Grande e deslocando-o com justiça e temperança para a senzala.
Nesse mister, evidenciam-se algumas cruciais e eternas questões a enfrentar: a reforma tributária, a reforma política, a reforma no Judiciário, o aumento da escolaridade em todos os níveis, a implantação de um sistema previdenciário de saúde menos privatizado, a efetiva e consciente defesa da soberania nacional com o fortalecimento não só material, mas também de um novo espírito dentro das FFAA. Questões, no meu modesto ponto de vista, que devem ser verdadeiramente discutidas pelo povo brasileiro e não apenas em decisões do congresso nacional ou em assinaturas dessa excrescência chamada de Medida Provisória. Questões a serem, algumas delas levadas a referendo popular, com a população brasileira tomando consciência do quê e do por quê se quer mudar.
A realidade à nossa volta é violenta e não necessita de hipocrisias ou dissimulações para combatê-la de verdade. A recente crise econômica do capitalismo e as ainda tímidas, mas promissoras, demonstrações de soberania de alguns povos, vizinhos nossos, alternativas com inegáveis perspectivas de mudança para um mundo melhor de se viver, indicam que – se não houver um esforço de todos que ainda acreditam na possibilidade da mudança – caminhamos para tragédias de enormes proporções. O Brasil tem muito a dizer sobre isso. O governo do qual a companheira faz parte tem sabido demonstrar isso aqui e além fronteiras. E a sua candidatura, companheira Dilma, coloca-se ou pode se colocar como bússola orientadora nessa caminhada, ajudando a evitar retrocessos indesejáveis.
Izaías Almada, escritor, dramaturgo e roteirista cinematográfico e autor, entre outros, dos livros TEATRO DE ARENA, UMA ESTÉTICA DE RESISTÊNCIA, da Boitempo Editorial e VENEZUELA POVO E FORÇAS ARMADAS, Editora Caros Amigos.
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