Até a pior das revistas enxerga melhor a Inglaterra que o governo inglês
por Cris no Somos andando
Tudo o que o governo britânico tem tentado ignorar na última semana está nas páginas das revistas semanais que estão nas bancas. Quer dizer, mais ou menos.
Por mais que parte da mídia esteja conivente no objetivo de fingir que acredita que a violência que começou no dia 9 em Londres é só “criminalidade, pura e simples”, é impossível que todos ignorem o óbvio. A Inglaterra – e a Europa, o Ocidente, o capitalismo – está em crise, e faz duas vítimas na camada mais vulnerável da população. É o que sustenta a versão europeia da revista Time, a voz mais lúcida entre a gritaria dos meios de comunicação que têm algum tipo de destaque.
O que as semanais têm em comum é a tentativa de buscar alguma explicação e fugir da armadilha da resposta óbvia e fácil. As duas matérias da Time não tratam os riots (termo pelo qual o episódio ficou conhecido na Inglaterra e que vou utilizar daqui para frente) como um problema isolado. Em vez disso, mostram que algo muito maior está em jogo, que o sistema está em crise. Os riots não são a doença, mas um sintoma.
“A Inglaterra está quimando” é a primeira frase da segunda matéria, que não trata diretamente sobre os riots, mas sobre a crise econômica e social pela qual a Europa passa. O foco é “o declínio da Europa”, mas a metáfora da abertura relaciona instantaneamente com os dias de fogo nada metafísico visto nas ruas de Londres e de algumas outras cidades inglesas. Ela começa na página seguinte à do final da primeira matéria, essa sim sobre os jovens que foram as ruas colocar fogo em carros, saquear lojas, protestar.
Nessa, Time fala sobre a concentração de renda (a maior da Europa e só semelhante, entre os países desenvolvidos, à dos EUA) que provoca profundo pessimismo nos ingleses. Sobre a correlação entre raça e classe, sobre as altas taxas de desemprego entre os jovens, o corte de gastos do governo do conservador primeiro ministro, David Cameron. O último, ponto delicado, pede uma ressalva: eles ainda não se fizeram sentir efetivamente pela população, o que faz com que os ingleses não estejam vivendo pior do que nos tempos de Partido Trabalhista no poder. Mas isso não faz com que ignore que o Reino Unido vive o momento de maior dívida da sua história, o que, aliado a su adiversidade cultural, pode causar uma explosão. Por fim, fala na questão policial, que, surpreendentemente, tem sido o foco de outras publicações.
A The Economist, por exemplo, reconhece que há causas difíceis de explicar, mas sequer procura buscá-las. Não aprofunda. Fica no debate sobre a ação da polícia e em como a política da organização policial deve ser afetada em função dos riots. Ou seja, discute um ponto que também é importante, mas menor dentro do conjunto de causas que pode trazer profundas transformações para todos os setores da sociedade. Em segundo plano, a política de bem-estar, a política para os jovens, as relações familiares, entre outros. Diz que 2011 está sendo um “annus horribilis” para a Inglaterra, mas muito mais por causa do caso isolado de violência e sua repercussão do que pela situação que a causou, que envolve desigualdade, crise de valores, desemprego, austeridade.
Isso sem falar no box que trata da forma de comunicação entre os jovens que foram às ruas. Facebook, Twitter e Blackberries viraram os vilões da história, a ponto de justificar a quebra da privacidade de seus usuários (como contraponto, só vê a perda de lucratividade das empresas). A The Economist defende que as empresas cedam informações ao governo para ajudar na captura de supostos criminosos e vai além ao sugerir que a polícia pode usar a mesma tecnologia como arma contra quem a usa contra a polícia. Como se fosse uma guerra entre mocinhos e bandidos, entre totalmente certo e completamente errado, ela mais uma vez simplifica um grande problema social.
Por fim, para ficar apenas em três exemplos (comprei ainda a New Statesman, mas não merece consideração especial), a The Spectator fala no desemprego e na facilidade e se tornar um criminoso como fatores importantes (e para isso cita até a superpopulação carcerária, que levaria os jovens a pensarem que não tem mais lugar para eles lá dentro e, portanto, estão livres para agir ilegalmente). Mas a ordem em que os apresenta, quando coloca a criminalidade antes do desemprego, inverte a lógica em que as coisas acontecem. A revista não relaciona um fator com o outro – por que há criminalidade? – e ignora muitos outros. Reduz a complexidade da sociedade e do problema que ela enfrenta. Da mesma forma, simplifica demais sua solução. Como na The Economist, a solução aparece principalmente ligada ao reforço policial. A The Spectator chega a dizer que é fácil corrigir o problema. Bastaria aumentar o número de policiais e alocá-los no lugar certo. Ou seja, aumentar o investimento e reformar o sistema policial. Mas não fala nada sobre reformar o sistema social e o sistema político…
Ainda que com focos um pouco distorcidos – pelo menos aos olhos de uma observadora estrangeira vivendo temporariamente sob a cultura britânica – e muitas vezes ignorando fatores protagonistas, todas as revistas conseguiram avançar bastante além do patamar em que o governo parou. Pode-se discordar sobre a verdadeira relevância social da atuação policial, argumentando-se que essa seria talvez uma resposta ao problema, não sua causa, mas já é um enorme passo adiante reconhecer um problema envolvendo todo o sistema de proteção dos cidadãos. Já o governo não só não anda para a frente como dá enormes passos para trás. Quem paga o pato continuam sendo os mesmos.
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Cartoon do Pigs in Maputo.
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