Vidas repletas de sentido: Apolônio e Renée de Carvalho
Inicio esse breve artigo com uma afirmação que soará desmedida, quem sabe até provocativa para alguns, mas que me parece um tanto óbvia. Apolônio de Carvalho representa para a história brasileira o mesmo que Garibaldi representa para a Itália ou Charles De Gaulle para a França. Tal afirmação, no entanto, dificilmente encontrará respaldo em alguma obra de sucesso da historiografia nacional. Afinal, o óbvio nem sempre adquire força suficiente para tornar-se consenso.
Mas embora nossa historiografia não reconheça – e não será difícil compreender os motivos – talvez a celebração do centenário de Apolônio nos abra a possibilidade de rompermos a cortina de silêncio e cinismo que a historiografia oficial reserva até aqui à figura quase mítica desse brasileiro singular.
Apolônio de Carvalho viveu plenamente os maiores sonhos, medos e esperanças que o século XX produziu. Enfrentou o medo de um mundo dominado pelo nazi-fascismo e com as próprias mãos contribuiu para que não sucumbissemos aos horrores do totalitarismo. Foi combatente das mais generosas lutas que a humanidade travou em favor da liberdade, justiça e democracia no século passado. Esteve na Espanha, ao lado dos republicanos, armas em punho para defender a Constituição e a dignidade daquele país.
No Brasil, lutou em favor dos mais pobres, combateu a censura das palavras e das ideias as quais jamais renunciou. Preso, exilado, derrotado por tantas vezes, jamais se curvou às adversidades de um mundo que parecia desenvolver uma luta particular para promover a ruína de seus sonhos e suas esperanças. Lutou pela democracia, a viu reconquistada, queria mais. Ajudou a fundar um partido, levantou a bandeira da anistia, das diretas. Até o fim de seus dias recusou-se a abrir mão de princípios que, por tantas vezes, quase lhe custaram a própria vida.
Ninguém por estas terras encarnou melhor que Apolônio o espírito enobrecedor e humanamente grandioso que inspirou o internacionalismo socialista. Foi um homem de luta e atuação globais, num mundo que esteve à beira de fechar as portas para o que hoje conhecemos como globalização.
Ontem, o Governador do Estado do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, concedeu a medalha Negrinho do Pastoreio à Renée France de Carvalho, companheira de sonhos e de tantas lutas de Apolônio.
Muito já foi dito acerca dos vazios de nossa memória coletiva. E, certamente, uma das omissões mais gritantes se relaciona com o papel da mulher na construção de nossa identidade nacional. O gesto do governo gaúcho foi também um ato de indignação contra o renitente silêncio de nossa historiografia a respeito do papel que desempenharam mulheres como Renée. Sua história é belíssima e não apenas como “esposa” de Apolônio, mas como uma combatente tão corajosa quanto seu companheiro de longas e memoráveis jornadas. Renée é a Olga Benário com quem ainda podemos nos encontrar, entrevistar e brindar a vida.
Apolônio é um símbolo nacional, um orgulho para todos e todas brasileiras que, verdadeiramente, acreditam na vida, na solidariedade e no futuro da humanidade. Que bom seria ver ruas, avenidas, praças e cidades pelo Brasil homenageando gente como Apolonio ao invés de ditadores, oligarcas e tantos outros próceres do atraso.
Apolônio e Renée preencheram com um significado extraordinário suas trajetórias de vida. Ousaram viver a plenitude de sua humanidade, assim como tantos outros que lutaram ao seu lado. A democracia que herdamos, com todas suas imperfeições, é fruto de sua luta obstinada em favor da liberdade. Vidas repletas de sentido. Nossas homenagens estarão para sempre aquém do significado dessas vidas para a vida de todos nós. Só nos resta repetir insistentemente: obrigado Apolônio, obrigado Renée.
(*) Vinícius Wu é historiador e Chefe de Gabinete do Governador do Estado do Rio Grande do Sul
Foto: Caco Argemi/Palácio Piratini
Memória e Contexto exibido em 21/05/2012
Tema: Apolônio de Carvalho
A ficha nº 1 do PT
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