“São bandidos de farda”, diz homossexual agredido pela BM em Caxias do Sul
Rachel Duarte no SUL 21
De um lado do local conhecido como Parque dos Macaquinhos, um grupo de policias militares assiste televisão dentro do módulo da Brigada Militar. Do outro, no prédio da Câmara de Vereadores de Caxias do Sul, a vítima de agressão policial revive mais uma vez a traumática experiência da noite do dia 11 de fevereiro deste ano, ao prestar depoimento para a Ouvidoria Estadual de Segurança Pública, nesta terça-feira (8). A pedido da Comissão de Direitos Humanos do legislativo municipal, o promotor de vendas D.N (31 anos), que foi sequestrado, humilhado e agredido de diversas formas por seis policiais militares e impedido de registrar a ocorrência por um policial civil na época em que sofreu o abuso, falou sobre o caso que já dava como encerrado até a última semana.
“Eu não durmo mais”, afirmou a vítima. “Ando na rua de óculos e boné para não ser reconhecido, mas eu já tive o desprazer de cruzar com alguns destes policiais. Eu até então não tinha contado para ninguém isso que tinha me acontecido. Apenas para algumas pessoas mais próximas”, contou D.N., ainda impressionado com a repercussão do caso.
Apesar da gravidade do abuso policial, o fato ganhou notoriedade na imprensa e repercussão social apenas três meses depois. Com o indiciamento dos policiais militares pela Polícia Civil na última sexta-feira (4), o caso ganhou notoriedade e sensibilizou o parlamento caxiense, já procurado pelo agredido em março, alguns dias depois do abuso policial.
A divulgação de imagens do circuito de segurança da Polícia Civil alertou também a Secretaria Nacional de Direitos Humanos da Presidência da República, que emitiu uma nota de apoio ao legislativo caxiense e ao governo gaúcho nesta terça (8). Como D.N também passou por constrangimentos e agressões verbais devido à sua orientação sexual, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Travestis e Transexuais (ABGLT) também está monitorando o caso para evitar a impunidade dos agressores e o esquecimento do acontecimento na serra gaúcha.
Além do indiciamento por abuso de poder feito pela Polícia Civil, os policiais militares também responderão a inquérito militar na Corregedoria da Brigada Militar. Além disso, a Ouvidoria Estadual de Segurança Pública colheu o depoimento da vítima e levantou provas para o encaminhamento do caso às corregedorias dos demais órgãos da Secretaria Estadual de Segurança Pública. “Não podemos tolerar o tratamento desumano e cruel. Acompanharemos o caso e fiscalizaremos o andamento do processo para que não fique impune”, alerta a Ouvidora Patrícia Couto.
O abuso
As agressões aconteceram na noite do dia 11 de fevereiro de 2012. Ao passear no Parque dos Macaquinhos, famoso ponto de encontro dos jovens caxienses, D.N fez amizade com uma moradora nova na cidade, que é lésbica e apresenta aparência física masculinizada. O estereótipo pode ter influenciado nas provocações disparadas por um grupo que bebia e fumava próximo aos novos amigos. “Eles fizeram chacotas e piadas”, afirmou D.N., que resolveu buscar auxílio da Brigada Militar diante do inconveniente. No local, ele disse que houve omissão no atendimento por parte da policial de plantão. “Ela mal falou comigo e disse que não era para eu ensinar o trabalho dela”, contou.
A partir do impasse entre o pedido de atendimento e a negativa da policial, as agressões tiveram início. Por entender estar sendo desacatada, a PM passo a xingar D.N enquanto falava com outra colega por telefone. “Ela atirou no chão e me mandou sair dizendo que o próximo tiro seria no meu peito”, disse a vítima. Até então sem retrucar à autoridade, D.N resistiu à saída do local e ameaçou denunciar a conduta abusiva da policial. A partir desta declaração, sofreu agressões físicas por parte da dupla de mulheres da BM. “Me deram tapas e uma me acertou com a arma no olho”, disse, oferecendo como prova a nova carteira de identidade, feita após a ocorrência e com a face bem lesionada.
Inconformado com o tratamento recebido, o rapaz decidiu ir até a delegacia da Polícia Civil para fazer um registro de ocorrência. Na ausência do policial para fazer o boletim, voltou à rua, falando no telefone com o Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Ao sair do Palácio da Polícia Civil, foi surpreendido por três brigadianos. O promotor de vendas foi algemado e levado a uma viatura. O rapaz ainda tentou argumentar, mas foi empurrado para dentro do veículo oficial. “Eles me disseram que nós íamos dar uma voltinha”, falou D.N. A viatura percorreu o centro de Caxias e o rapaz alega ter sido agredido constantemente no trajeto.
O rapaz foi trazido de volta ao módulo da Brigada Militar por onde permaneceu por 45 minutos. No local, os policiais registraram ocorrência de desacato a autoridade por parte da vítima e reviraram os pertences pessoais de D.N. Ao perceber nos pertences pessoais dele a presença de um corretivo facial, um prestobarba e uma cueca, D.N alega ter sido agredido por sua orientação sexual. “Perguntavam se eu estava caçando no parque. ‘Ah tu é puto’. ‘Tava caçando homem no parque’ diziam para mim”, contou.
Homossexualidade contribui para o aumento das agressões
Atordoado com o volume de ofensas, humilhações e agressões físicas, D.N partiu com mais motivos para tentar o registro da ocorrência ainda naquela noite. Ao retornar à delegacia da Polícia Civil, o policial presente negou fazer o registro das agressões e acompanhou o rapaz até outra praça da cidade, onde ele embarcou em um táxi e foi embora do local dos crimes.
O registro da ocorrência só foi feito dois dias depois do fato, com a sensibilidade do delegado que atendeu D.N na terceira tentativa de denúncia dos abusos dos policiais militares. “Ele me orientou a procurar o Ministério Público e a Comissão de Direitos Humanos. No MP eu fui muito bem tratado pelo promotor”, contou. “Só uma observação. O que me fez denunciá-los foi ele disse que iria fazer questão de sujar o meu nome. Na minha família ninguém tem o nome sujo”, defendeu o promotor de vendas.
O processo seguiu e três meses depois aconteceu o indiciamento dos policiais. De acordo com assessores do legislativo caxiense que preferiu não se identificar, o caso só teve desdobramento por ter envolvido o Ministério Público. “Com o indiciamento, a Polícia Civil resolveu se preocupar. Não fosse a disputa entre as corporações, seria mais um caso que não daria em nada”, avaliou.
O caso de D.N não foi o primeiro de abuso de poder por parte da Brigada Militar registrado no município de Caxias do Sul. “Só em 2012 registramos outras quatro denúncias de crimes de tortura, invasão domiciliar e outros de postura truculenta semelhante ao caso deste homossexual”, informa a Ouvidora Estadual de Segurança Patrícia Couto.
A vereadora Ana Corso (PT) confirma que a postura violenta de alguns representantes da polícia militar da cidade é recorrente. Integrante da Comissão de Direitos Humanos do legislativo desde 1997, ela conta que antigamente a situação era ainda mais grave. “Teve períodos em que a Comissão tinha que providenciar advogados para acompanhar as vítimas nas denúncias envolvendo policiais. E isto é algo que acontece em todo o estado. Isto é herança da conduta repressora destas instituições durante o período da ditadura militar”, alegou.
No entendimento do coordenador da ONG Nuances, Célio Golin, que acompanhou a oitiva da Ouvidoria de Segurança nesta terça-feira (8), é lamentável que o estado que deveria proteger os cidadãos seja em alguns casos o próprio agente da violência. “É uma prática rotineira da Brigada Militar. Tomar chutes e tapas no rosto é comum nas abordagens. Além disso, os agredidos são levados para registrar ocorrência na BM e não na Polícia Civil onde tem que ser. Isso é uma prática comum, principalmente nas periferias”, alertou.
Golin entende que o rapaz de Caxias está vulnerável a novas ameaças por parte dos policiais agressores e que o caso é mais um que quebra a confiança da comunidade na polícia. “As pessoas começam a ficar com medo da polícia e gera uma descrença no estado”, disse.
“Eu não confio mais na Brigada Militar”, diz a vítima
“Eu não tenho mais o mesmo respeito pela Brigada Militar. Seria hipocrisia dizer que confio na polícia”, disse D.N. ao final da fala de 20 minutos na Câmara de Vereadores. O dano da perda de confiança na polícia é o menor carregado pelo jovem natural do Paraná. Há nove anos em Caxias, onde mora na casa de uma tia, falecida na última semana, D.N trabalhava como contratado de uma empresa e levava uma vida tranquila no interior do Rio Grande do Sul.
Depois da ocorrência, o contrato na iminência de vencer não foi renovado e os empregadores pediram total sigilo sobre o nome da empresa no caso. Hoje promotor de vendas de uma empresa de telefonia móvel, D.N não consegue apresentar bom desempenho nas vendas. “Eu voltei a tomar meus remédios para depressão e não durmo à noite. Esta noite, dormi duas horas. Não posso dizer que minha vida está a mesma”, falou em conversa reservada com o Sul21.
Muito transtornado e com a voz trêmula ao falar sobre o caso, o rapaz moreno e franzino diz que até então não tinha vivenciado nenhuma situação de homofobia na cidade. “Foi a primeira vez e de uma forma bem traumática. Mas, na convivência cotidiana, os caxienses não manifestaram preconceito comigo”, disse.
Homossexual assumido desde os 27 anos de idade, D.N tem um companheiro e sempre lidou com bom humor com as piadas entre amigos e familiares.
Brigada Militar “não sabia do indiciamento dos policiais”
Diante da repercussão do caso, o comando da Brigada Militar de Caxias do Sul declarou à imprensa local que não sabia do indiciamento dos policiais militares por abuso de autoridade contra o rapaz, tampouco da existência de um vídeo.
Todos os envolvidos na ocorrência seguem trabalhando no módulo onde ocorreram os crimes e trabalhavam normalmente nesta terça-feira. Em visita no local, a equipe do Sul21 não obteve qualquer informação sobre o caso. Ao se identificar e fazer poucas perguntas, a reportagem foi tratada com muita objetividade. O número de PMs rapidamente dobrou na antesala do módulo e a orientação foi procurar informações no comando central da BM da região. “Eles que podem dar qualquer informação”, disse um dos PMs.
“Eles são bandidos de farda. Isso é pior que os reais bandidos”, diz D.N
Sul21 – Porque tu vieste morar em Caxias do Sul?
D.N – Eu perdi a minha chefe no meu trabalho no Paraná e vim passar alguns dias na minha tia, em Caxias, para descansar. Ao chegar aqui gostei e tive uma proposta de emprego na cidade e fiquei. Trabalhei de forma experimental e acabei ficando.
Sul21 – O que tu fazia profissionalmente?
D.N - Eu trabalho com molduras em quadros. Era o que eu fazia (no Paraná). Em 2009 eu voltei para o Paraná devido a uma crise de depressão e fiquei um ano com ela. Em 2010 voltei. Morei próximo ao Parque dos Macaquinhos, por isso conheço a maioria das pessoas.
Sul21 – Tu sofrias preconceito na cidade? Te sentias excluído?
D.N – Eu não me via excluído. Não vejo os caxienses como mais ou menos preconceituosos. Quando eu assumi minha sexualidade minha família disse que já sabia e só estava vendo até onde eu ia me enganar. Quando eu cheguei em Caxias pela segunda vez, morei com uma amiga que dividia apartamento comigo e contei para ela. Então, com todas as pessoas próximas eu fui aceito e de forma bem natural. Eu nunca havia sofrido homofobia.
Sul21 – Como tu avalias o que aconteceu contigo? Aconteceu porque a postura da polícia é repressiva por essência ou foi um caso de homofobia?
D.N – Policiais que fazem isso são bandidos fardados, piores que bandidos de verdade. Só temos que deixar claro que foram alguns policiais, não toda a Brigada Militar. São estes seis policiais que foram agressivos. Em 2010, também no parque, eu fui abordado por policiais militares de moto e não sofri nenhuma agressão. Assumi minha sexualidade quando perguntado e não aconteceu nada. Mesmo se eu tivesse 100% errado, as policiais não precisariam mentir na ocorrência que registraram. Mesmo que eu tivesse desacatado pura e simplesmente, eles teriam que me algemar e me levar para o registro da ocorrência na Polícia Civil, e não foi o que aconteceu. Mas, eu estava bem em relação ao acontecido até semana passada, quando me ligaram da imprensa dizendo que a Polícia Civil estava preocupada comigo. Então fui ver a matéria sobre o indiciamento com o vídeo. Eu estava no velório da minha tia, eu nem pensava mais neste caso. A partir daí, voltei a viver esta história.
Sul21 – De que forma este fato te marcou? O que mudou de lá pra cá na tua vida?
D.N – Eu passei a usar óculos escuros e boné. Ando me escondendo na rua. Parece paranoico, mas a gente sabe como eles são…
Sul21 – Tu já voltou ao Parque dos Macaquinhos?
D. N – (Respiro profundo) Não. Não voltei mais lá. Eu estive próximo ao parque no dia que fui prestar o depoimento na audiência do MP e nunca mais. Hoje ao vir pra cá (Câmara de Vereadores), eu encontrei com a policial que começou as agressões naquela noite…
Ouça a íntegra do depoimento da vítima à Ouvidoria Estadual de Segurança Pública:
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