Exclusivo: Aloysio Biondi faz um balanço do governo
Fui um dos criadores da Revista dos Bancários e seu primeiro editor, cargo que exerci durante uns sete ou oito anos. Naquele período trabalhei com excelentes jornalistas, mas o melhor deles certamente foi Aloysio Biondi.
Em 2002, já tocando o projeto da Revista Fórum fui convidado pelo Paulo Donizetti (atualmente editor da Revista do Brasil) a fazer um texto sobre ele. Fazia dois anos que Bioindi falecera e o governo FHC, do qual ele combateu a políticia econômica como ninguém, estava perto do fim.
Sugeri ao Paulinho (Donizeti) que poderia fazer uma entrevista com o velho a partir de leituras de seus textos. Algo que mostrasse como suas idéias estavam vivas.
Nos últimos dias estava buscando reportagens e artigos que escrevi pra publicar no blog nesses dias de recesso e encontrei esta entrevista. Pasmem, ela continua muito atual. E merece ser lida porque neste fim de governo Lula, vale muito a pena lembrar de como era o mundo e o país no fim do governo FHC.
Biondi continua atual
É importante registrar que pouquíssimas frases de ligação e uma ou outra firula foram criadas. Só me permiti isso para a matéria não ficar burocrática – ele entenderia. O todo é Biondi. Na pesquisa, foram consultados e utilizados só os artigos e entrevistas dos últimos anos. As reportagens produzidas por ele para a RdB foram a base, mas o seu livro O Brasil Privatizado (Ed. Fundação Perseu Abramo) e matérias publicadas na Folha de S.Paulo, Diário Popular, Correio Braziliense, Fenae Notícias, revistas Bundas e Caros Amigos, jornal da Adunicamp entre outros veículos, também foram fundamentais.
Revista dos Bancários – A crise que abate a Argentina e que assusta o Brasil é resultado do quê?
Aloysio Biondi – A Argentina iniciou, antes mesmo do Brasil, as privatizações apresentadas como “uma reforma para reduzir a dívida do governo e eliminar o rombo”. Vendeu tudo: ferrovias, empresas de energia, telefônicas, portos, e até sua Petrobras (a YPF) e seus equivalentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Agora está de calças na mão, nas mãos do FMI, sem patrimônio e sem o lucro das estatais. A privatização não reduziu nem a dívida nem o déficit da Argentina. Exatamente como no Brasil. O mundo está assistindo a taxas de crescimento econômico fantásticas nos países que desafiaram o FMI, os países ricos e as imposições neoliberais de abertura de mercado às multinacionais e suas importações e à livre circulação dos capitais especulativos. A Malásia, que estabeleceu controles sobre os capitais, cresceu. A Coréia do Sul, que reduziu rapidamente as taxas de juros após a crise de 1997, cresceu e a China continua a crescer no ritmo de 8% ao ano.
RdB – Então o senhor considera que a herança do governo Fernando Henrique Cardoso para o país é ruim?
Biondi – São duas as principais heranças do governo Fernando Henrique. A primeira, a destruição da alma nacional. Ele conseguiu destruir o país, a solidariedade e jogar um segmento da população contra outro. A segunda, o nosso retorno à década de 50, porque passamos a ter uma dependência total do exterior.
RdB – Mas esse governo tinha outro caminho?
Biondi – Claro, afinal a febre da privatização e o impulso ao chamado neoliberalismo teve seu ponto de partida na Inglaterra, com a primeira-ministra Margaret Thatcher, mas mesmo ela fez tudo diferente do governo Fernando Henrique Cardoso. A privatização inglesa não representou a doação de empresas estatais, a preços baixos e a poucos grupos empresariais. Ao contrário: seu objetivo foi exatamente a pulverização das ações, isto é, transformar o maior número possível de cidadãos ingleses em donos de ações, acionistas das empresas privatizadas. Não foi só blablablá, não. O governo inglês criou prêmios, incentivos para qualquer cidadão comprar ações. Quem não as vendesse antes de certo prazo tinha o direito de ganhar determinadas quantias, em datas já marcadas no momento da compra. Isso na Inglaterra de Thatcher, nos anos 80. Poderia dar outros exemplos, mais recentes, como da Itália ou da França, mas acho que são dispensáveis, se até a Thatcher fez diferente…
RdB – A sociedade foi passiva durante esse governo, acomodou-se? Qual a responsabilidade da mídia nesse aspecto?
Biondi – A sociedade brasileira perdeu a noção – se é que a tinha – de que as estatais não são de propriedade do governo. Esqueceu que o Estado é mero gerente do patrimônio da sociedade, que as estatais sempre pertenceram a cada cidadão, portanto a todos, e não ao governo federal ou estadual. Essa falta de consciência coletiva, reforçada pelos meios de comunicação, explica a indiferença com que a opinião pública viu o governo dar por dez o que valia mil. Negócios que em sua vida particular nenhum trabalhador, empresário, nenhuma família de classe média ou do povão aceitariam. Qual seria a reação de qualquer brasileiro se um vizinho rico quisesse comprar sua casa, que valesse 50 mil ou 100 mil, por 5 mil ou 10 mil? Centenas de bilhões de reais de patrimônio público, de propriedade dos milhões de brasileiros, foram vendidos dessa forma, sem grandes protestos, a não ser nas áreas sindicais ou oposicionistas – que, por isso mesmo, tiveram seu espaço nos meios de comunicação devidamente cortado.
RdB – O Banco do Brasil, a Caixa Federal e a Petrobras seriam a bola da vez num futuro governo tucano?
Biondi – Vamos começar pelo BB. A desmoralização do Banco do Brasil perante a opinião pública foi uma das operações de manipulação mais maquiavelicamente montadas pelo governo FHC. Eles anunciaram prejuízos recordes para o Banco do Brasil, mas na verdade tudo isso foi fabricado. A equipe econômica lançou como dinheiro perdido no balanço do BB todo e qualquer empréstimo em atraso, mesmo que este atraso fosse de apenas um dia. Qual a manobra? Pelas regras do Banco Central, somente devem ser considerados créditos de liquidação duvidosa os empréstimos já vencidos e não pagos há mais de dois meses… Além disso, o governo federal deve alguns bilhões ao BB, relativos a compra de títulos da dívida externa, mas não inclui nas contas. É um absurdo com intuito de desmoralizar o Banco.
RdB – E a Caixa?
Biondi – Tanto quanto o BB, a Caixa Econômica Federal foi utilizada, ao longo dos anos, para resolver problemas que eventualmente afetassem a economia. Uma utilização muitas vezes de interesse da sociedade mas que, inevitavelmente, reduzia a lucratividade da instituição. No governo FHC, no entanto, tem sido utilizada para aumentar os lucros dos bancos privados, vergonhosamente obrigada a engolir bilhões e bilhões de prejuízos que, na prática, seriam dos banqueiros. Tem gente que já esqueceu disso ou prefere não lembrar, mas na quebra do Econômico, por exemplo, a CEF “comprou” os contratos de financiamento da casa própria que o Econômico havia concedido – 1,7 bilhão de reais. Na quebra do Bamerindus, idem. A Caixa comprou os “negócios” com alto nível de inadimplência para beneficiar os futuros compradores. O pior é que essa operação virou norma: a Caixa Econômica Federal passou a comprar permanentemente esses ativos, ficando com os riscos e os prejuízos… Mas, você não vai me perguntar do Banespa?
RdB – Claro, mas é que eu queria falar do futuro, do que ainda pode vir a ser privatizado.
Biondi – É que de repente você acha que o assunto já é velho. A gente costuma esquecer as coisas…
RdB – Então tá, mas seja breve…(risos)
Biondi – Eu sei que já falei muito a respeito do Banespa, mas é bom lembrar algumas coisas. Antes do BB ele já havia sido vítima de manobras para considerá-lo quebrado. Poucas horas antes da posse do primeiro mandato de Mário Covas, no final de 1994, o BC decretou intervenção no banco paulista, alegando que o estado havia deixado de pagar uma parcela de um acordo de refinanciamento da dívida, firmado com o governo federal. No entanto, segundo a defesa de um ex-governador paulista, em juízo, o atraso era inferior a dez dias – e as regras do acordo de financiamento previam que qualquer punição somente poderia ser adotada após 30 dias de atraso. No caso do Banespa, ainda, houve um aspecto nunca explicado suficientemente à opinião pública. Afirmava-se que o banco tinha um rombo, estaria quebrado, que seria uma situação igual à do Nacional, do Econômico e de outros bancos particulares que quebraram. Na verdade, no caso desses bancos privados, as dívidas eram superiores aos créditos que tinham – inclusive a receber. Havia rombo, sim. No caso do Banespa, a situação era outra: o dinheiro do banco não havia evaporado, sumido. Havia, o que não foi satisfatoriamente explicado, um grande devedor, que não estava pagando suas dívidas: o governo do Estado. O Banespa nunca quebrou. Quem estava “quebrado” era o governo do Estado. Os créditos a receber existiam. O dinheiro existia. Mas a equipe de FHC construiu uma imagem de “quebra” para o Banespa, para abrir caminho para a privatização.
RdB – O senhor não está sendo muito ácido em relação ao governo?
Biondi – Será pra menos? Eles estimularam o envio de dólares para o exterior, elevaram os juros para cobrir os rombos criados, quebraram a União, os estados, os municípios. Destruíram a indústria e a agricultura. Esses clones malditos dos intelectuais de ontem destruíram em menos de uma década o que havia sido construído ao longo de várias. Destruíram o sonho, a Alma Nacional. O que somos hoje? Um quintal dos países ricos? Não. Um curral. De bovinos ruminando babosamente, enquanto o vizinho do lado, o trabalhador, o funcionário público, o aposentado, o agricultor, o empresário, todos, um a um, são arrastados para o grande matadouro em que o país se transformou, com suas mil formas de abate, como desemprego, cortes na aposentadoria, falsas reformas do funcionalismo, falências, importações. Enquanto empresas de todos os portes são engolidas por grupos estrangeiros e até o petróleo, ou os campos mais fabulosos de petróleo do mundo, com poços capazes de produzir 10 mil barris por dia, cada um, são entregues a preço simbólico às multinacionais.
RdB – Por que esses dados que o Biondi cita aparecem tão pouco na imprensa?
Biondi – Honestamente, acho que o jornalismo nunca enfrentou uma fase tão ruim no Brasil. Quanto ao jornalismo econômico, ele é como o jornalismo policial, fragmentado. Dá o momento de recorde e o momento de grande crise. Depois não fala mais nada e todo mundo fica pensando que só tem crise. A gente já passou por várias, em que as pessoas pensavam que o mundo ia acabar, com a ajuda da imprensa, aí, sim, ideológica. Quando estourou o negócio do preço do petróleo, os Estados Unidos queriam invadir o Oriente Médio. Então, as revistas, a televisão mostravam sempre os xeques com aquele bando de mulheres em Londres, Paris, fazendo compras. Ficava todo mundo com aquela idéia de que só existiam eles. Os árabes tinham indústria petroquímica e incríveis planos de investimentos, mas parecia que eram tudo Ali Babá. Que pegavam petrodólar e botavam na caverna e diziam “aqui ninguém entra”. E não era isso. Os relatórios do Banco Mundial e do FMI repetiam isso, que a economia mundial ia acabar. Não se dizia que eles tinham planos de investimentos incríveis, o Brasil fez barganhas para construir ferrovias, usinas etc., em troca do petróleo.
RdB – Vou mudar um pouco o rumo da conversa, alguns temas vão estar na pauta desta eleição presidencial, o primeiro é a reforma tributária…
Biondi – O Brasil é um país tão incrível, que você tinha imposto realmente progressivo, 30%, 35%, 40% de imposto de renda, eles, esse governo, reduziram para duas alíquotas, 10% e 27,5%. E a imprensa, que antigamente gritaria contra isso, e antigamente que eu digo é há oito anos, não falou nada. E a classe média não tem a menor noção de que, de repente, o mais rico, o milionário, paga menos que ela. A Folha de S.Paulo chegou a publicar matéria mostrando as alíquotas máximas em outros países, mas, como sempre, discretamente. Antigamente sairia: “Aumento de imposto do Brasil não tem paralelo no mundo”. Nada disso é editado para as pessoas verem.
RdB – O empresariado nacional ganhou ou perdeu com a política econômica do atual governo?
Biondi – Como diz a mestra Maria da Conceição Tavares, os Estados Unidos forçaram a abertura dos outros mercados para compensar o déficit com o Japão, que não conseguiam compensar nunca. O empresariado nacional, se a gente relembrar a euforia inicial de globalização, achou que ia ter um banquete e não percebeu que era o prato principal (risos). Nada me provocou mais indignação do que a quebra da Metal Leve. O Mindlin foi sempre o empresário que mais se preocupou com tecnologia no Brasil. Em 1968 fiz uma matéria sobre a enxurrada de importações e citava um exemplo tirado do noticiário: a FAB importou pistão para motor de avião dos Estados Unidos e, quando os caras abriram a caixa, estava lá que era fabricado pela Metal Leve. Porque ela exportava para a Nasa. A Romi, naquela época, fazia máquinas de controle numérico, precursoras do computador, e exportava tornos para os Estados Unidos. Isso desmente a imagem de que não temos tecnologia, que o empresário é acomodado etc. Para criar renda, criar um mercado interno, você tem uma política de criar emprego.
RdB – E fazer oposição era difícil…
Biondi – Na época da ditadura, a esquerda… esquerda não, na verdade esses caras que estão no governo, debatiam isso o tempo todo. O Edmar Bacha, no livro Encargos Sociais e Mão-de-Obra no Brasil, em 1972, propunha que a Previdência fosse cobrada como nos outros países, sobre o faturamento e não sobre a folha de salário. Porque, para pagar menos à Previdência, a empresa automatizava. No governo Geisel, o BNDES criou uma linha de financiamento para a indústria de base porque importávamos máquinas maciçamente, apoiando a Villares, Romi, Bardella etc. Mas tinha mais duas linhas, inclusive um dado que foi muito usado para dizer que o governo tinha até fábrica de sutiã, nessa onda da lavagem cerebral. Por que o governo tinha até fábrica de sutiã? Por uma política econômica sábia. Porque o BNDES apoiou os setores de base, onde era importante a tecnologia, mas apoiou também os setores que usavam muita mão-de-obra, como o têxtil.
RdB – O BNDES cumpriu o papel destinado a ele no governo FHC?
Biondi – A sigla BNDES neste governo significou Banco Nacional do Desmantelamento Econômico e Social. Transformou-se em instrumento de destruição de empregos, desmantelamento de empresas, retrocesso tecnológico. Passou a financiar a desnacionalização, a maior dependência e, ironicamente, atua até como instrumento para aumentar o rombo de dólares do país. Isto é, passou a ser uma alavanca para a crise cambial na qual o Brasil está se atolando cada vez mais. Mas você não acha que está na hora de acabar a entrevista, depois você vai ter problema para editar, não diz que eu não te avisei…
RdB – Só mais uma, depois disso tudo fico me perguntando, e tem solução?
Biondi – Acredito que estejamos vivendo o fim de um ciclo, o problema agora será dos Estados Unidos, e nós, infelizmente, vamos passar pelo purgatório que outros países já passaram. Espero que essa virada tenha ensinado alguma coisa para as pessoas, e que talvez os meios de comunicação percebam que eles ajudaram a afundar o país. Tenho os jornais guardados. Tem até o Fernando Henrique dizendo, em outubro de 1995, “quando alguém me fala de recessão, eu tenho vontade de dar uma gargalhada”. (risos)
RdB – Acho que acabamos.
Biondi – Ninguém vai agüentar ler isso. Nem a família. A gente vai ficando velho e a audiência vai diminuindo. Os parentes já não agüentam mais ler as mesmas coisas. (risos)
RdB – Vamos tomar uma cerveja?
Biondi – Não, vou ter de pegar a Bia (sua filha) na escola e depois vou pra casa. Marquei com os meninos (Pedro e Antônio). Vou fazer macarronada pra eles. E você falou que precisava desta entrevista para hoje e agora me chama para tomar cerveja? Eu sempre caindo na sua e você me enrolando com os prazos.
Em 2002, já tocando o projeto da Revista Fórum fui convidado pelo Paulo Donizetti (atualmente editor da Revista do Brasil) a fazer um texto sobre ele. Fazia dois anos que Bioindi falecera e o governo FHC, do qual ele combateu a políticia econômica como ninguém, estava perto do fim.
Sugeri ao Paulinho (Donizeti) que poderia fazer uma entrevista com o velho a partir de leituras de seus textos. Algo que mostrasse como suas idéias estavam vivas.
Nos últimos dias estava buscando reportagens e artigos que escrevi pra publicar no blog nesses dias de recesso e encontrei esta entrevista. Pasmem, ela continua muito atual. E merece ser lida porque neste fim de governo Lula, vale muito a pena lembrar de como era o mundo e o país no fim do governo FHC.
Biondi continua atual
É importante registrar que pouquíssimas frases de ligação e uma ou outra firula foram criadas. Só me permiti isso para a matéria não ficar burocrática – ele entenderia. O todo é Biondi. Na pesquisa, foram consultados e utilizados só os artigos e entrevistas dos últimos anos. As reportagens produzidas por ele para a RdB foram a base, mas o seu livro O Brasil Privatizado (Ed. Fundação Perseu Abramo) e matérias publicadas na Folha de S.Paulo, Diário Popular, Correio Braziliense, Fenae Notícias, revistas Bundas e Caros Amigos, jornal da Adunicamp entre outros veículos, também foram fundamentais.
Revista dos Bancários – A crise que abate a Argentina e que assusta o Brasil é resultado do quê?
Aloysio Biondi – A Argentina iniciou, antes mesmo do Brasil, as privatizações apresentadas como “uma reforma para reduzir a dívida do governo e eliminar o rombo”. Vendeu tudo: ferrovias, empresas de energia, telefônicas, portos, e até sua Petrobras (a YPF) e seus equivalentes do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal. Agora está de calças na mão, nas mãos do FMI, sem patrimônio e sem o lucro das estatais. A privatização não reduziu nem a dívida nem o déficit da Argentina. Exatamente como no Brasil. O mundo está assistindo a taxas de crescimento econômico fantásticas nos países que desafiaram o FMI, os países ricos e as imposições neoliberais de abertura de mercado às multinacionais e suas importações e à livre circulação dos capitais especulativos. A Malásia, que estabeleceu controles sobre os capitais, cresceu. A Coréia do Sul, que reduziu rapidamente as taxas de juros após a crise de 1997, cresceu e a China continua a crescer no ritmo de 8% ao ano.
RdB – Então o senhor considera que a herança do governo Fernando Henrique Cardoso para o país é ruim?
Biondi – São duas as principais heranças do governo Fernando Henrique. A primeira, a destruição da alma nacional. Ele conseguiu destruir o país, a solidariedade e jogar um segmento da população contra outro. A segunda, o nosso retorno à década de 50, porque passamos a ter uma dependência total do exterior.
RdB – Mas esse governo tinha outro caminho?
Biondi – Claro, afinal a febre da privatização e o impulso ao chamado neoliberalismo teve seu ponto de partida na Inglaterra, com a primeira-ministra Margaret Thatcher, mas mesmo ela fez tudo diferente do governo Fernando Henrique Cardoso. A privatização inglesa não representou a doação de empresas estatais, a preços baixos e a poucos grupos empresariais. Ao contrário: seu objetivo foi exatamente a pulverização das ações, isto é, transformar o maior número possível de cidadãos ingleses em donos de ações, acionistas das empresas privatizadas. Não foi só blablablá, não. O governo inglês criou prêmios, incentivos para qualquer cidadão comprar ações. Quem não as vendesse antes de certo prazo tinha o direito de ganhar determinadas quantias, em datas já marcadas no momento da compra. Isso na Inglaterra de Thatcher, nos anos 80. Poderia dar outros exemplos, mais recentes, como da Itália ou da França, mas acho que são dispensáveis, se até a Thatcher fez diferente…
RdB – A sociedade foi passiva durante esse governo, acomodou-se? Qual a responsabilidade da mídia nesse aspecto?
Biondi – A sociedade brasileira perdeu a noção – se é que a tinha – de que as estatais não são de propriedade do governo. Esqueceu que o Estado é mero gerente do patrimônio da sociedade, que as estatais sempre pertenceram a cada cidadão, portanto a todos, e não ao governo federal ou estadual. Essa falta de consciência coletiva, reforçada pelos meios de comunicação, explica a indiferença com que a opinião pública viu o governo dar por dez o que valia mil. Negócios que em sua vida particular nenhum trabalhador, empresário, nenhuma família de classe média ou do povão aceitariam. Qual seria a reação de qualquer brasileiro se um vizinho rico quisesse comprar sua casa, que valesse 50 mil ou 100 mil, por 5 mil ou 10 mil? Centenas de bilhões de reais de patrimônio público, de propriedade dos milhões de brasileiros, foram vendidos dessa forma, sem grandes protestos, a não ser nas áreas sindicais ou oposicionistas – que, por isso mesmo, tiveram seu espaço nos meios de comunicação devidamente cortado.
RdB – O Banco do Brasil, a Caixa Federal e a Petrobras seriam a bola da vez num futuro governo tucano?
Biondi – Vamos começar pelo BB. A desmoralização do Banco do Brasil perante a opinião pública foi uma das operações de manipulação mais maquiavelicamente montadas pelo governo FHC. Eles anunciaram prejuízos recordes para o Banco do Brasil, mas na verdade tudo isso foi fabricado. A equipe econômica lançou como dinheiro perdido no balanço do BB todo e qualquer empréstimo em atraso, mesmo que este atraso fosse de apenas um dia. Qual a manobra? Pelas regras do Banco Central, somente devem ser considerados créditos de liquidação duvidosa os empréstimos já vencidos e não pagos há mais de dois meses… Além disso, o governo federal deve alguns bilhões ao BB, relativos a compra de títulos da dívida externa, mas não inclui nas contas. É um absurdo com intuito de desmoralizar o Banco.
RdB – E a Caixa?
Biondi – Tanto quanto o BB, a Caixa Econômica Federal foi utilizada, ao longo dos anos, para resolver problemas que eventualmente afetassem a economia. Uma utilização muitas vezes de interesse da sociedade mas que, inevitavelmente, reduzia a lucratividade da instituição. No governo FHC, no entanto, tem sido utilizada para aumentar os lucros dos bancos privados, vergonhosamente obrigada a engolir bilhões e bilhões de prejuízos que, na prática, seriam dos banqueiros. Tem gente que já esqueceu disso ou prefere não lembrar, mas na quebra do Econômico, por exemplo, a CEF “comprou” os contratos de financiamento da casa própria que o Econômico havia concedido – 1,7 bilhão de reais. Na quebra do Bamerindus, idem. A Caixa comprou os “negócios” com alto nível de inadimplência para beneficiar os futuros compradores. O pior é que essa operação virou norma: a Caixa Econômica Federal passou a comprar permanentemente esses ativos, ficando com os riscos e os prejuízos… Mas, você não vai me perguntar do Banespa?
RdB – Claro, mas é que eu queria falar do futuro, do que ainda pode vir a ser privatizado.
Biondi – É que de repente você acha que o assunto já é velho. A gente costuma esquecer as coisas…
RdB – Então tá, mas seja breve…(risos)
Biondi – Eu sei que já falei muito a respeito do Banespa, mas é bom lembrar algumas coisas. Antes do BB ele já havia sido vítima de manobras para considerá-lo quebrado. Poucas horas antes da posse do primeiro mandato de Mário Covas, no final de 1994, o BC decretou intervenção no banco paulista, alegando que o estado havia deixado de pagar uma parcela de um acordo de refinanciamento da dívida, firmado com o governo federal. No entanto, segundo a defesa de um ex-governador paulista, em juízo, o atraso era inferior a dez dias – e as regras do acordo de financiamento previam que qualquer punição somente poderia ser adotada após 30 dias de atraso. No caso do Banespa, ainda, houve um aspecto nunca explicado suficientemente à opinião pública. Afirmava-se que o banco tinha um rombo, estaria quebrado, que seria uma situação igual à do Nacional, do Econômico e de outros bancos particulares que quebraram. Na verdade, no caso desses bancos privados, as dívidas eram superiores aos créditos que tinham – inclusive a receber. Havia rombo, sim. No caso do Banespa, a situação era outra: o dinheiro do banco não havia evaporado, sumido. Havia, o que não foi satisfatoriamente explicado, um grande devedor, que não estava pagando suas dívidas: o governo do Estado. O Banespa nunca quebrou. Quem estava “quebrado” era o governo do Estado. Os créditos a receber existiam. O dinheiro existia. Mas a equipe de FHC construiu uma imagem de “quebra” para o Banespa, para abrir caminho para a privatização.
RdB – O senhor não está sendo muito ácido em relação ao governo?
Biondi – Será pra menos? Eles estimularam o envio de dólares para o exterior, elevaram os juros para cobrir os rombos criados, quebraram a União, os estados, os municípios. Destruíram a indústria e a agricultura. Esses clones malditos dos intelectuais de ontem destruíram em menos de uma década o que havia sido construído ao longo de várias. Destruíram o sonho, a Alma Nacional. O que somos hoje? Um quintal dos países ricos? Não. Um curral. De bovinos ruminando babosamente, enquanto o vizinho do lado, o trabalhador, o funcionário público, o aposentado, o agricultor, o empresário, todos, um a um, são arrastados para o grande matadouro em que o país se transformou, com suas mil formas de abate, como desemprego, cortes na aposentadoria, falsas reformas do funcionalismo, falências, importações. Enquanto empresas de todos os portes são engolidas por grupos estrangeiros e até o petróleo, ou os campos mais fabulosos de petróleo do mundo, com poços capazes de produzir 10 mil barris por dia, cada um, são entregues a preço simbólico às multinacionais.
RdB – Por que esses dados que o Biondi cita aparecem tão pouco na imprensa?
Biondi – Honestamente, acho que o jornalismo nunca enfrentou uma fase tão ruim no Brasil. Quanto ao jornalismo econômico, ele é como o jornalismo policial, fragmentado. Dá o momento de recorde e o momento de grande crise. Depois não fala mais nada e todo mundo fica pensando que só tem crise. A gente já passou por várias, em que as pessoas pensavam que o mundo ia acabar, com a ajuda da imprensa, aí, sim, ideológica. Quando estourou o negócio do preço do petróleo, os Estados Unidos queriam invadir o Oriente Médio. Então, as revistas, a televisão mostravam sempre os xeques com aquele bando de mulheres em Londres, Paris, fazendo compras. Ficava todo mundo com aquela idéia de que só existiam eles. Os árabes tinham indústria petroquímica e incríveis planos de investimentos, mas parecia que eram tudo Ali Babá. Que pegavam petrodólar e botavam na caverna e diziam “aqui ninguém entra”. E não era isso. Os relatórios do Banco Mundial e do FMI repetiam isso, que a economia mundial ia acabar. Não se dizia que eles tinham planos de investimentos incríveis, o Brasil fez barganhas para construir ferrovias, usinas etc., em troca do petróleo.
RdB – Vou mudar um pouco o rumo da conversa, alguns temas vão estar na pauta desta eleição presidencial, o primeiro é a reforma tributária…
Biondi – O Brasil é um país tão incrível, que você tinha imposto realmente progressivo, 30%, 35%, 40% de imposto de renda, eles, esse governo, reduziram para duas alíquotas, 10% e 27,5%. E a imprensa, que antigamente gritaria contra isso, e antigamente que eu digo é há oito anos, não falou nada. E a classe média não tem a menor noção de que, de repente, o mais rico, o milionário, paga menos que ela. A Folha de S.Paulo chegou a publicar matéria mostrando as alíquotas máximas em outros países, mas, como sempre, discretamente. Antigamente sairia: “Aumento de imposto do Brasil não tem paralelo no mundo”. Nada disso é editado para as pessoas verem.
RdB – O empresariado nacional ganhou ou perdeu com a política econômica do atual governo?
Biondi – Como diz a mestra Maria da Conceição Tavares, os Estados Unidos forçaram a abertura dos outros mercados para compensar o déficit com o Japão, que não conseguiam compensar nunca. O empresariado nacional, se a gente relembrar a euforia inicial de globalização, achou que ia ter um banquete e não percebeu que era o prato principal (risos). Nada me provocou mais indignação do que a quebra da Metal Leve. O Mindlin foi sempre o empresário que mais se preocupou com tecnologia no Brasil. Em 1968 fiz uma matéria sobre a enxurrada de importações e citava um exemplo tirado do noticiário: a FAB importou pistão para motor de avião dos Estados Unidos e, quando os caras abriram a caixa, estava lá que era fabricado pela Metal Leve. Porque ela exportava para a Nasa. A Romi, naquela época, fazia máquinas de controle numérico, precursoras do computador, e exportava tornos para os Estados Unidos. Isso desmente a imagem de que não temos tecnologia, que o empresário é acomodado etc. Para criar renda, criar um mercado interno, você tem uma política de criar emprego.
RdB – E fazer oposição era difícil…
Biondi – Na época da ditadura, a esquerda… esquerda não, na verdade esses caras que estão no governo, debatiam isso o tempo todo. O Edmar Bacha, no livro Encargos Sociais e Mão-de-Obra no Brasil, em 1972, propunha que a Previdência fosse cobrada como nos outros países, sobre o faturamento e não sobre a folha de salário. Porque, para pagar menos à Previdência, a empresa automatizava. No governo Geisel, o BNDES criou uma linha de financiamento para a indústria de base porque importávamos máquinas maciçamente, apoiando a Villares, Romi, Bardella etc. Mas tinha mais duas linhas, inclusive um dado que foi muito usado para dizer que o governo tinha até fábrica de sutiã, nessa onda da lavagem cerebral. Por que o governo tinha até fábrica de sutiã? Por uma política econômica sábia. Porque o BNDES apoiou os setores de base, onde era importante a tecnologia, mas apoiou também os setores que usavam muita mão-de-obra, como o têxtil.
RdB – O BNDES cumpriu o papel destinado a ele no governo FHC?
Biondi – A sigla BNDES neste governo significou Banco Nacional do Desmantelamento Econômico e Social. Transformou-se em instrumento de destruição de empregos, desmantelamento de empresas, retrocesso tecnológico. Passou a financiar a desnacionalização, a maior dependência e, ironicamente, atua até como instrumento para aumentar o rombo de dólares do país. Isto é, passou a ser uma alavanca para a crise cambial na qual o Brasil está se atolando cada vez mais. Mas você não acha que está na hora de acabar a entrevista, depois você vai ter problema para editar, não diz que eu não te avisei…
RdB – Só mais uma, depois disso tudo fico me perguntando, e tem solução?
Biondi – Acredito que estejamos vivendo o fim de um ciclo, o problema agora será dos Estados Unidos, e nós, infelizmente, vamos passar pelo purgatório que outros países já passaram. Espero que essa virada tenha ensinado alguma coisa para as pessoas, e que talvez os meios de comunicação percebam que eles ajudaram a afundar o país. Tenho os jornais guardados. Tem até o Fernando Henrique dizendo, em outubro de 1995, “quando alguém me fala de recessão, eu tenho vontade de dar uma gargalhada”. (risos)
RdB – Acho que acabamos.
Biondi – Ninguém vai agüentar ler isso. Nem a família. A gente vai ficando velho e a audiência vai diminuindo. Os parentes já não agüentam mais ler as mesmas coisas. (risos)
RdB – Vamos tomar uma cerveja?
Biondi – Não, vou ter de pegar a Bia (sua filha) na escola e depois vou pra casa. Marquei com os meninos (Pedro e Antônio). Vou fazer macarronada pra eles. E você falou que precisava desta entrevista para hoje e agora me chama para tomar cerveja? Eu sempre caindo na sua e você me enrolando com os prazos.
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