O Natal de Luzia Cândido
Antes de colocar o texto, vou fazer uma ressalva: tirei do Blog do Mario. Confesso que desconheço essa página, e cheguei até ela através de algum link no tuíter, imagino. Isso não importa, afinal. O que interessa é o exemplo de jornalismo, coisa que não se vê, reitero, em qualquer jornaleco do tipo Zero Horaa qualquer momento. Procurei e o blogue não aderiu à licença Creative Commons ou colocou algum símbolo do CopyLeft. Da mesma maneira, assim como faço com as fotos, vou “roubar” o texto. Embora isso seja tema para uma postagem exclusiva, convém ressaltar a nossa opinião de que o domínio do conteúdo deve ser público, e que englobe todos independentemente da licença. Que os devidos créditos sejam dados, também – exatamente da maneira que estamos fazendo na dada hora. Inclusive, o próprio Mario Lobato, dono do blogue, fez isso. O texto que reproduziremos a seguir é de José Carlos Fernandes, com foto de Walter Alves, e pode ser lido na Gazeta do Povo.
Ela mora num lugar chamado Morro da Esperança, tem nome inspirado e faz de uma lição antiga – a arte de arear panelas – um sinal de que continua a postos, atrás de dias melhores.
A noite de Natal da carrinheira Luzia Cândido, 40 anos, “fiapo de gente”, moradora do Morro da Esperança, na CIC, Zona Sul de Curitiba – foi, a exemplo dos anos anteriores, sem luxos. Antes da meia-noite, ela já costuma passar a tramela na porta de sua meia-água, às margens do Rio Barigui, fazer uma prece com os filhos Wellington e Adriele, 10 e 8 anos, e pôr as crianças para dormir. Antes de se deitar, como sempre faz, ela passa um pano na pia e olha com satisfação para as 21 panelas que recolheu do lixo. Parecem saídas da loja: bem areadas, tinindo de brilho, penduradas à parede como se fossem troféus. São as já famosas “panelas da Luzia”. Fazem jus ao nome da dona.
Se bem lembra, foi a mãe, Helenita Lopes, quem lhe ensinou os métodos e os significados do brilho platinado: panelas areadas são garantia de que a mulher é asseada. Luzia, contudo, tinha apenas 8 anos quando foi iniciada na arte das senhoras. Tornou-se bacharel. E avisa que não tem mistério – “é só manter a palha de aço bem firme na sola da mão, sem embolar, e esfregar com força, para cima e para baixo, até reluzir”.
Se o alumínio estiver muito encardido – caso das panelas retiradas do lixo –, tem de passar uma lasca de tijolo para amolecer a craca. É infalível. A lição dada por Luzia vem seguida da máxima das donas de casa de antigamente: é pela limpeza das panelas que se conhece uma mulher. Luzia não é dessas, mesmo com a maré dos dias não concorrendo muito a favor das prendas domésticas e da educação das moças.
Quando criança, em Japira, no Norte Pioneiro, Luzia Cândido foi criada na pobreza. Meninota, mudou-se para um terrenão do Santa Quitéria, “na serraria do José Hamílton”, onde comia o que plantava no quintal. Há 16 anos, já casada com Edílson, foi para uma ocupação no Morro do Piolho, como – para tristeza dos moradores – ficou conhecido o Morro da Esperança, endereço de 186 famílias, palco de 22 homicídios em 2010. Instalou-se na zona de perigo, aqueles 30 metros de beira em que o rio não responde por seus humores. Mas seguiu adiante, vivendo das pequenas esperanças: a de ter casa própria, a de o marido se aprumar, a de se manter como diarista numa boa casa de família.
Mas um carro pegou o seu Edílson, a morte levou a boa patroa e a casa ainda não caiu do céu. Até um emprego melhorzinho, como cobradora de ônibus, não vingou. Luzia é um dos 207.754 moradores das 254 ocupações irregulares da capital. Hoje, ganha R$ 80 por mês catando papel, algum saldo do Bolsa-Família, ajuda daqui e dali. Duvida-se que possa pagar uma casa nova da Cohab, estimada em R$ 28 mil, longe dos aguaceiros do Barigui, que adoram invadir-lhe o barraco sem pedir licença. Desde 2002, vive da reciclagem, ofício que a tornou uma figura conhecida nas movimentadas ruas Raul Pompéia e Cid Campelo, polos comerciais da Cidade Industrial.
A história da Luzia, como se vê, é de chorar três dias na beira do rio. Mas arrisca a própria carrinheira consolar a gente. Ela é do tipo que não pede muito da vida: queria um namorado, de preferência no Natal. Um rádio para ouvir o culto da Igreja Visão Missionária. E um emprego de diarista. Mulher que areia panela feito ela adora uma pia cheia de louça para deixar no capricho, agradar a dona da casa – fazer na casa dos outros como faria na sua.
Luzia admite. Sempre sonhou com uma casa com panelas bem postas na parede e uma cristaleira apinhada de cerâmicas. Esforço não lhe falta. “Faço uns rolos”, diz, ao explicar a origem de cada bonequinho de porcelana e copo enfeitado de vidro que organizou nas estantes. São coloridos e alegres. E há quem passe à beira do rio – enfrente os montes de detritos que o povo joga ali, os entulhos dos casebres demolidos – só para ver luzir a cozinha da Luzia. Ela não impede: na porta está escrito: “Jesus te ama”. Os que chegam são bem-vindos, desde que limpem os pés no capacho.
Que não julguem a Luzia uma mulher sem disposição. É Luzia Homem. É Santa Luzia. É Luzia Cândido, a cândida – como disse uma conhecida que prefere o anonimato. Este ano, matriculou-se na EJA – a Educação de Jovens e Adultos – e cursa a oitava série. As crianças são asseadas, o barraco um brinco – cheio de plantas e enfeites. O som feito pelos passarinhos “coleirinhas”, o Bebê, Trovão e Tico-Tico, deixam tudo um pouco melhor. “Não acho a vida injusta comigo”, resume a mulher, com os filhos pulando no cangote. Wellington anuncia que quer um “play” qualquer coisa e reclama a falta de um pisca-pisca. Adriele passa margarina num pão e avisa que uma casinha de boneca está bom. A mãe desconversa. Não vão ganhar é nada.
Com sorte, neste finalzinho de dezembro, hão de olhar pela fresta da porta e ver Luzia e sua paisagem de panelas areadas. Não terão dúvidas de que é tempo de Natal.
Ela mora num lugar chamado Morro da Esperança, tem nome inspirado e faz de uma lição antiga – a arte de arear panelas – um sinal de que continua a postos, atrás de dias melhores.
A noite de Natal da carrinheira Luzia Cândido, 40 anos, “fiapo de gente”, moradora do Morro da Esperança, na CIC, Zona Sul de Curitiba – foi, a exemplo dos anos anteriores, sem luxos. Antes da meia-noite, ela já costuma passar a tramela na porta de sua meia-água, às margens do Rio Barigui, fazer uma prece com os filhos Wellington e Adriele, 10 e 8 anos, e pôr as crianças para dormir. Antes de se deitar, como sempre faz, ela passa um pano na pia e olha com satisfação para as 21 panelas que recolheu do lixo. Parecem saídas da loja: bem areadas, tinindo de brilho, penduradas à parede como se fossem troféus. São as já famosas “panelas da Luzia”. Fazem jus ao nome da dona.
Se bem lembra, foi a mãe, Helenita Lopes, quem lhe ensinou os métodos e os significados do brilho platinado: panelas areadas são garantia de que a mulher é asseada. Luzia, contudo, tinha apenas 8 anos quando foi iniciada na arte das senhoras. Tornou-se bacharel. E avisa que não tem mistério – “é só manter a palha de aço bem firme na sola da mão, sem embolar, e esfregar com força, para cima e para baixo, até reluzir”.
Se o alumínio estiver muito encardido – caso das panelas retiradas do lixo –, tem de passar uma lasca de tijolo para amolecer a craca. É infalível. A lição dada por Luzia vem seguida da máxima das donas de casa de antigamente: é pela limpeza das panelas que se conhece uma mulher. Luzia não é dessas, mesmo com a maré dos dias não concorrendo muito a favor das prendas domésticas e da educação das moças.
Quando criança, em Japira, no Norte Pioneiro, Luzia Cândido foi criada na pobreza. Meninota, mudou-se para um terrenão do Santa Quitéria, “na serraria do José Hamílton”, onde comia o que plantava no quintal. Há 16 anos, já casada com Edílson, foi para uma ocupação no Morro do Piolho, como – para tristeza dos moradores – ficou conhecido o Morro da Esperança, endereço de 186 famílias, palco de 22 homicídios em 2010. Instalou-se na zona de perigo, aqueles 30 metros de beira em que o rio não responde por seus humores. Mas seguiu adiante, vivendo das pequenas esperanças: a de ter casa própria, a de o marido se aprumar, a de se manter como diarista numa boa casa de família.
Mas um carro pegou o seu Edílson, a morte levou a boa patroa e a casa ainda não caiu do céu. Até um emprego melhorzinho, como cobradora de ônibus, não vingou. Luzia é um dos 207.754 moradores das 254 ocupações irregulares da capital. Hoje, ganha R$ 80 por mês catando papel, algum saldo do Bolsa-Família, ajuda daqui e dali. Duvida-se que possa pagar uma casa nova da Cohab, estimada em R$ 28 mil, longe dos aguaceiros do Barigui, que adoram invadir-lhe o barraco sem pedir licença. Desde 2002, vive da reciclagem, ofício que a tornou uma figura conhecida nas movimentadas ruas Raul Pompéia e Cid Campelo, polos comerciais da Cidade Industrial.
A história da Luzia, como se vê, é de chorar três dias na beira do rio. Mas arrisca a própria carrinheira consolar a gente. Ela é do tipo que não pede muito da vida: queria um namorado, de preferência no Natal. Um rádio para ouvir o culto da Igreja Visão Missionária. E um emprego de diarista. Mulher que areia panela feito ela adora uma pia cheia de louça para deixar no capricho, agradar a dona da casa – fazer na casa dos outros como faria na sua.
Luzia admite. Sempre sonhou com uma casa com panelas bem postas na parede e uma cristaleira apinhada de cerâmicas. Esforço não lhe falta. “Faço uns rolos”, diz, ao explicar a origem de cada bonequinho de porcelana e copo enfeitado de vidro que organizou nas estantes. São coloridos e alegres. E há quem passe à beira do rio – enfrente os montes de detritos que o povo joga ali, os entulhos dos casebres demolidos – só para ver luzir a cozinha da Luzia. Ela não impede: na porta está escrito: “Jesus te ama”. Os que chegam são bem-vindos, desde que limpem os pés no capacho.
Que não julguem a Luzia uma mulher sem disposição. É Luzia Homem. É Santa Luzia. É Luzia Cândido, a cândida – como disse uma conhecida que prefere o anonimato. Este ano, matriculou-se na EJA – a Educação de Jovens e Adultos – e cursa a oitava série. As crianças são asseadas, o barraco um brinco – cheio de plantas e enfeites. O som feito pelos passarinhos “coleirinhas”, o Bebê, Trovão e Tico-Tico, deixam tudo um pouco melhor. “Não acho a vida injusta comigo”, resume a mulher, com os filhos pulando no cangote. Wellington anuncia que quer um “play” qualquer coisa e reclama a falta de um pisca-pisca. Adriele passa margarina num pão e avisa que uma casinha de boneca está bom. A mãe desconversa. Não vão ganhar é nada.
Com sorte, neste finalzinho de dezembro, hão de olhar pela fresta da porta e ver Luzia e sua paisagem de panelas areadas. Não terão dúvidas de que é tempo de Natal.
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