quarta-feira, 16 de março de 2011

quando o discurso e a prática não se aproximam

O típico esquerdiota


Sou de esquerda, mas tenho receio quando um negro entra no ônibus. Tenho ideais humanistas, mas troco de calçada ao avistar um mendigo. Discurso a favor dos meninos de rua, mas quando um deles chega perto me enojo somente ao fitar a sujeira entranhada nas suas unhas.


A foto da discórdia. Confesso que fiquei indeciso se cobria o rosto do homem. Sugestões?

Muitos costumam simplificar o jogo político polarizando opiniões entre de esquerda e direita. Muito embora este não seja o maior dos absurdos – ou talvez até nem mesmo um absurdo propriamente dito -, é impreterível desmistificar esses lados. De maneira breve, o presente artigo pretende relatar um caso em específico – não isolado -, que assolou este que vos escreve e, principalmente, o seu companheiro de boemia mais fiel: Fábio Viecili  (um sujeito que, num ato de tino, abandonou a faculdade de jornalismo).
Antes disso, convém reafirmar o que foi dito mais de oitenta vezes: nos posicionamos, sim, do lado esquerdo. Isso não impede uma forte crítica aos que compartilham da nossa ideologia – tampouco aqueles que servem de base para o nosso pensamento, como o (racista) Karl Marx. A ponderação, entretanto, e o estudo aprofundado acabam por relativizar muitos desses artifícios. O esquerditota típico, o liberalista moderno e ilustrado de calça Calvin Clain, óculos Tommy Hilfiger à lá Woody Allen e tênis AllStar, representa um mal de grande porte.

Peço sinceras desculpas pelo meu habitual esculacho que pode ser entendido como um preconceito dos grandes. A birra com a calça, o óculos e o par de tênis não faz o menor sentido. Aliás, ela nem existe. O sujeito que tornar-se-á peça chave para o entendimento desse artigo maçante não se veste – ou pelo menos não estava vestido – assim. Foi na passeata da Massa Crítica, no início do mês, que sucedeu-se a história: tiozão alternativo bicicleteiro, com pinta de eleitor do PT, com arrogância pra cima de um menino mirrado andarilho das ruas da Cidade Baixa.

Gabriel é o seu nome (do menino). Ou ao menos foi o que ele disse. Pediu o celular para bater umas fotos. Tomou algumas, e mais algumas. E outras depois. Ganhou autorização para circular pela multidão tirando fotografias e sumiu da nossa vista. Voltou depois de alguns minutos extremamente entusiasmado com o feito. Subiu numa estátua para tirar uma foto panorâmica, utilizava a linguagem gestual para se comunicar com as pessoas que carregavam cartazes dignos de registro. Parecia familiarizado com a fotografia. Um dom?
Chegou perto de um sujeito de óculos, que tinha um cartaz enrolado no guidom da bicicleta. Pediu autorização para bater uma foto e não obteve resposta momentânea. Alguns segundos depois, recebeu uma negativa desrespeitosa (mas não ríspida, devemos admitir). O homem que seria fotografado com o seu cartaz de protesto, ao perceber nossos olhares atentos, escancarou seu sorriso amarelo: “ele tá com vocês?”, perguntou. Diante da afirmação, concluiu: “ah, então tu pode tirar uma foto”. E o guri foi lá e tirou.

“Não gostei desse cara”, sussurei ao Fábio. “Também não”, obtive como resposta. E então me aproximei do guri para analisar sua foto. Passei uma por uma, elogiando cada tomada ao som do meu colega ao fundo julgando o menino de 15 anos como “muito inteligente”. Encontrei a presidente da Câmara dos Vereadores, Sofia Cavedon, e conversei alguns minutos com ela sobre o rapazito. Me recomendou conversar com ele, buscar saber mais sobre sua vida, a ponto de uma ajuda futura. É um trabalho que ficará em aberto e está sendo planejado (coisa que um jornalista não faz).

No fim da passeata, pela noite, uma cena que presenciei que parecia passar-se entre pai e filho: meu amigo girando o guri pelos braços, como se fosse de brincadeira, procedido de um abraço. Tudo isso precedido de uma indagação de outro: “como tu pode agarrar esse piolhento?”. O piolhento, então, nos seguiu até o Mister X, onde fez sua primeira refeição do dia. Antes de sair, ajudou na conta com dez centavos.

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