sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Haiti precisa de solidariedade real e organização social

Haiti, um ano de terremoto



Editorial da edição 411 do Brasil de Fato

Crianças confinadas em albergues veem o sonho da educação como algo cada vez mais distante. Homens e mulheres tentam ganhar a vida em meio a escombros. Com baldes na cabeça, em busca da cada vez mas escassa água potável, ou com carrinho de mão, perambulam sem esperança. Esse é um dos retratos do Haiti um ano após o devastador terremoto que deixou mais de 250 mil mortos e 1,5 milhão de desabrigados.

Quem aterriza na terra de Toussaint Louverture tem a impressão de que Porto Príncipe nunca deixou de tremer. Afirmar que desde a tragédia nada mudou seria exagerar no otimismo. De lá para cá, a intervenção estrangeira – antes limitada à atuação das tropas da Minustah, que está no país desde 2004 – se incrementou. Imediatamente após o terremoto, o governo dos EUA enviou pelo menos dez mil soldados ao país. O direito à autodeterminação no Haiti não existe. A miséria e a fome, que já eram parte do cotidiano, também aumentaram.

As Nações Unidas admitem que um ano após o terremoto ainda há mais de 800 mil desalojados vivendo em condições miseráveis. A violência sexual contra mulheres e crianças nos acampamentos também é parte do drama. A epidemia de cólera, que desde outubro do ano passado já cobrou a vida de quase 3,8 mil pessoas e afetou mais de 181 mil haitianos, segundo o Ministério de Saúde do Haiti, ainda tem origem desconhecida. Haitianos responsabilizam as tropas da Minustah por usar o rio Artibonité, fonte de água para a população, como latrina. As fossas comuns abertas para enterrar as vítimas do terremoto agora dão lugar às vítimas da cólera.

O mundo e a América Latina, em especial, não apenas mantêm, como ampliam, sua dívida com o Haiti. Apesar das acertadas críticas ao oportunismo estadunidense e europeu, que veem na tragédia uma porta aberta para a neocolonização da ilha caribenha, pouco foi feito pelos hermanos para ajudar a reconstruir esse país de maneira sustentável.

Não fosse a atuação de duas brigadas internacionalistas da América Latina – a de médicos cubanos e da Via Campesina –, a atuação dos países da região e do bloco da Alba, particularmente, seria, no mínimo, vergonhosa. Pelo menos 1,2 mil médicos cubanos atuam em 40 centros de saúde em todo o país e já trataram de mais de 30 mil pessoas doentes de cólera. Um outro grupo de médicos da brigada cubana Henry Reeve atua na prevenção à doença, percorrendo casa por casa, com folhetos na mão, explicando métodos básicos de higiene para evitar a propagação ainda maior da epidemia. São o maior contingente estrangeiro no país, dedicado a salvar vidas.

Um pequeno grupo de brasileiros da brigada Dessalines da Via Campesina – que também chegou ao Haiti meses antes do terremoto – trabalha sem descanso na instalação de cisternas para captar água da chuva e, assim, amenizar a crise de acesso à água potável. Pelo menos 1,2 mil cisternas já foram construídas, em trabalho conjunto com as comunidades haitianas. A produção de sementes para o plantio de alimentos e a organização de famílias camponesas é parte do trabalho dessa brigada.

A comunidade internacional, inicialmente abalada pela tragédia, prometeu 5,3 bilhões de dólares para a reconstrução das zonas afetadas pelo terremoto. De acordo com o Banco Mundial, apenas 1,2 bilhão de dólares foi entregue. O cenário poderia ser diferente caso a cooperação financeira internacional fosse maior? Talvez. Organizações sociais haitianas afirmam que sem um governo autônomo capaz de gerenciar os recursos em favor da reconstrução do país e do bem-estar de sua população, qualquer iniciativa financeira corre o risco de permanecer tal como a atual: entregue à organizações não governamentais, nacionais e estrangeiras, e à corrupção institucionalizada.

Tal crise de institucionalidade, refletida durante as controvertidas eleições realizadas em novembro, tende a se agravar ainda mais. O mandato do presidente haitiano René Préval termina no dia 7 de fevereiro, e o segundo turno das eleições ainda não puderam ser realizados. Uma missão da Organização dos Estados Americanos (OEA) encarregada de verificar as acusações de fraude eleitoral poderá indicar que o candidato governista, Jude Celestin, fique fora da disputa eleitoral no segundo turno. Se isso ocorrer, as eleições serão disputadas pela ex-primeira dama Mirlande Manigat e pelo cantor Michel “Sweet Micky” Martelly, em primeiro e segundo lugar na contagem dos votos, de acordo com a OEA.

A indicação da OEA não deixa de surpreender. Não foi casual a decisão do governo haitiano de deixar fora da disputa eleitoral o partido do ex-presidente Jean-Bertrand Aristide, o Familia Lavalas – um dos mais populares no país – e outros 14 partidos. Está em jogo a promessa de que pelo menos dez bilhões de dólares possam ser investidos em contratos para a reconstrução. Para isso, investidores interessados em transformar o Haiti em uma gigantesca maquiladora, com mão de obra semiescrava, necessitam que o novo presidente esteja alinhado a esses interesses, independentemente das necessidades da população haitiana.

Diante desse cenário, torna-se imperativa a organização social e a solidariedade real, desinteressada, em especial dos governos da América Latina.

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