Saudades de Marta e Erundina
Na última terça-feira, nas primeiras horas do alvorecer, as televisões e rádios de São Paulo já avisavam as pessoas para que evitassem sair com os seus carros às ruas. A cidade virara um caos por conta do que a imprensa local, como faz todos os anos nesta época, voltaria a dizer que foi a maior chuva desde o Dilúvio bíblico.
Vendo, pela televisão, a Marginal do Tietê literalmente submersa e centenas de milhares de veículos encurralados na via local, pensei que não conseguiria ir das cercanias da avenida Paulista ao aeroporto de Guarulhos, onde precisava estar às 11 horas para esperar um cliente argentino e, dali, tomar com ele um vôo a Curitiba, de onde escrevo.
Por via das dúvidas, decidi ir mais cedo ao aeroporto, pois a luz do sol, enquanto durasse, faria secar a vias, permitindo que a cidade voltasse a se movimentar. Havia que correr, pois no horizonte as nuvens negras já ensaiavam encobrir novamente a cidade e, quando isso acontecesse, em questão de minutos tudo pararia de novo.
Após muito trabalho para convencer um taxista a me levar para o olho do furacão, em mais duas horas consegui percorrer os trinta e tantos quilômetros que me separavam do aeroporto. As cenas, pelo caminho, seriam desoladoras, se não estivesse acostumado a elas.
Todo ano é a mesma coisa. A chuva vem, arrasa São Paulo, desabriga milhares de famílias, mata centenas de pessoas, a mídia diz que nunca antes naquela cidade choveu tanto, surra São Pedro até ele desmaiar e o paulistano segue feliz da vida, certo de que, como me disse o taxista que me levou ao aeroporto, “Isso acontece em qualquer parte”.
Todo ano, nesta época, a chuva causa estragos em várias partes do país. Mas em nenhuma parte acontece o que acontece em São Paulo. Não há uma cidade desse porte que mergulha em caos tão completo e vê ocorrerem tantas mortes.
Ocorrem enchentes e deslizamentos de encostas em zonas rurais, mas nenhuma grande cidade brasileira vive caos parecido. Até porque, não conheço outro povo que se conformaria tão bovinamente com tragédias pré-datadas como a que se abate sobre São Paulo todo ano na mesma época.
Sabem aqueles jornais paulistas que chamaram de “chapas-brancas” os blogueiros que entrevistaram Lula? Já vai para quase uma semana que a cidade em que estão sediados vai voltando a se transformar em uma Atlântida bizarra e eles, até terça-feira, não deram uma só manchete criticando a incompetência – ou a má fé – desumana dos governos estadual e municipal.
Que saudades de Marta Suplicy e de Luiza Erundina. No tempo em que elas governavam São Paulo, os responsáveis pela catástrofe tinham nome – e não vou discutir se lidavam melhor com o problema ou se não tiveram apoio estadual ou federal como Alckmin, Serra e Kassab sempre tiveram.
Apesar de achar que a imprensa paulista pesava a mão nas críticas, porque elas não haviam inventado as enchentes em São Paulo, não tinham apoio do governo do Estado, muito menos do governo federal e governavam havia pouco tempo, era bom, pelo menos, poder atribuir culpa a um ser vivente.
Hoje, não. A culpa é de uma entidade que ninguém sabe se existe. Sim, existiu um Pedro, apóstolo de Cristo. Dizem até que virou santo. Mas nunca o vi mais gordo e não me satisfaz atribuir-lhe mortes, vidas destruídas, todo o sofrimento que advirá, mais uma vez, do próprio povo de São Paulo, que não enxerga um palmo diante do nariz.
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