Indo além do Cidadão Kane
Cidadão Kane, que já foi chamado de melhor filme da história, narra a trajetória de um magnata das comunicações que manipulava deliberadamente as informações para influenciar o público. Este célebre personagem, contudo, não é apenas fruto da imaginação fértil do cineasta Orson Welles. Ele realmente existiu, embora com outro nome e aparência: Roberto Pisani Marinho.
Pelo menos, é isso que deixa a entender o documentário Muito Além do Cidadão Kane (Beyon Citizen Kane, no original) , cuja exibição deveria ser obrigatória em qualquer faculdade de comunicação que se preze. Realizado em 1993, o filme, dirigido pelo inglês Simon Hartog, está até hoje envolto em uma aura de proibição e censura, culpa de uma ordem judicial emitida pela Rede Globo. Para se ter uma ideia, quando seria mostrado publicamente pela primeira vez no país, em março de 1994, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, a polícia militar veio um dia antes da estreia para impedir a sessão, apreendendo cartazes e a cópia do filme. Mesmo assim, contrário à crença popular, o vídeo não está proibido de ser exibido legalmente no Brasil, mas é quase impossível de ser achado, restando somente cópias na internet.
A Rede Globo sempre mexeu com o imaginário dos brasileiros. Principal conglomerado audiovisual do país, ela se consolidou com seu “Padrão Global de Qualidade”, desfrutando de um enorme sucesso popular e aprimorando seu poder político. Não foram raras as acusações feitas a ela, que teve sua força reforçada durante a ditadura. Tudo isso o documentário trabalha em detalhes, descrevendo a complexa trama que transformou a TV Globo na líder absoluta de audiência.
Contando com os depoimentos de Chico Buarque, Lula, Washington Olivetto, o ex-ministro da Justiça Armando Falcão, Leonel Brizola e os ex-colaboradores globais Walter Clark e Armando Nogueira, o tom que permeia o documentário é, evidentemente, a polêmica e a controvérsia. Uma frase de Chico resume bem a mensagem que se quer passar: “Marinho é mais poderoso de que o Cidadão Kane. Ele é a maior força política de um país de 150 milhões de habitantes. Nada se faz sem consultá-lo. É assustador“. Aliás, chega a ser engraçado que o único programa sobre o poder da Globo teve que ser feito por um estrangeiro. Por que nenhum conterrâneo tentou realizar algo parecido antes? Será resquício do autoritarismo em nossa sociedade? Ou será que nossa democracia não havia ainda amadurecido suficientemente para permitir produções contestadoras desse tipo?
Deixando as especulações de lado, cabe ressaltar que, como qualquer documentário, Muito Além do Cidadão Kane constrói a sua versão do fatos, induzindo o espectador a nutrir uma antipatia, em parte justificada, sobre a empresa. Nenhum documento ou fonte primária é mostrado, e as únicas falas favoráveis à Rede Globo são as de Armando Falcão. Este, inclusive, tem uma opinião tão reacionária que chega a considerar o Golpe de 64 como uma revolução. Além disso, a maioria das manipulações discutidos também já são de conhecimento geral, como a edição do debate Collor X Lula no JN ou a omissão da importância dos comícios das Diretas Já. Porém, certos aspectos narrados são menos conhecidos, como o fato da ditadura ter cancelado a concessão da TV Excelsior, em 1970, única empresa que fazia oposição ao regime, favorecendo dessa forma o crescimento da Globo.
Agora, passados quase vinte anos desde que foi lançado, pode-se perceber que o vídeo acertou ao profetizar alguns pontos. O principal é que a Globo realmente tenta disfarçar o seu envolvimento com o Regime Miltar. Basta ler os livros de Memórias das Organizações Globo. Em Jornal Nacional: A notícia faz história, embora não sejam negados os casos mencionados acima, todos eles são minimizados e retocados. “A emissora vinha sendo pressionada pelos militares para não cobrir os eventos [das Diretas Já]“, está escrito na página 158. Ora, então como os outros veículos conseguiram realizar uma cobertura completa? E não são esses os mesmos militares que beneficiaram a Globo nos anos 60-70?
Ao longo da década de 90, a Rede Globo perdeu gradualmente sua audiência, algo que não poderia ser previsto pelo documentário. Devido a diversos fatores externos e internos, entre eles as novas tecnologias e formas de ver TV, essa perda não está se concentrando em uma única concorrente, mas se espelha por várias emissoras segmentadas. Pode ser que deixe o seu posto, só que é difícil prever quando e se isso acontecerá. Ainda que precise repensar suas estratégias para seduzir novamente seu público, ela continua sendo a mais poderosa e influente televisão, e nisso o documentário não perdeu a sua atualidade.
Quanto a Roberto Marinho, o Cidadão Kane do Brasil, sua morte deixou um vácuo no poder da Globo. De certa forma, ele personificava a força da organização e, feliz ou infelizmente, não deixou herdeiro à altura de sua influência. Um homem extremamente pragmático, soube sobreviver acima de qualquer ideologia que estivesse no governo. Talvez o correto fosse dizer que ele conseguiu criar seu próprio partido político, sem dúvida o mais importante do país. Assim, a única diferença entre ele e sua contraparte fictícia é que Marinho, aparentemente, nunca possuiu um Rosebud.
Se puder, assista!http://www.youtube.com/watch?v=JA9bPyd1RKQ Parte 1
http://www.youtube.com/watch?v=m0m1rmi-Ooc Parte 2
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