Sindicalismo de classe versus sindicalismo negociador de Estado
ihu.unisinos
Artigo de Ricardo Antunes
“O governo Lula, como um Bonaparte, articulou as duas pontas da barbárie brasileira: seu governo remunerou como nenhum outro as diversas frações burguesas e, no extremo oposto da pirâmide social, onde encontramos os setores mais desorganizados e empobrecidos da população brasileira que dependem das doações do Estado para sobreviver, oferece uma política assistencial sem tocar sequer minimamente nenhum dos pilares estruturais da tragédia brasileira”, escreve Ricardo Antunes em artigo publicado no sítio espanhol Rebelión, 14-02-2011. A tradução é do Cepat.
Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP e autor de vários livros. Destacamos alguns: Adeus ao Trabalho? (Cortez), Os sentidos do trabalho (Boitempo), A rebeldia do trabalho (Ed. Unicamp) e O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho (Boitempo).
Eis o artigo.
No contexto de uma monumental reorganização – econômica, social, política, ideológica e valorativa – do capital, como o sindicalismo de classe vem esboçando suas respostas?
No caso do Brasil, onde na década de 1980 aflorou um novo sindicalismo com claro perfil de classe, que mudanças vem sofrendo ao longo desse período de desertificação neoliberal? O que aconteceu na última década no cenário sindical? Quais são as experiências e as possibilidades de um sindicalismo de classe depois de oito anos de governo sócio-liberal de Lula?
O mais destacado líder sindical do chamado novo sindicalismo se converteu em um novo instrumento das classes dominantes, uma variante de semi-bonapartismo, onde o controle e a cooptação do chamado sindicalismo combativo (e em particular da cúpula sindical) eram decisivos.
Vale recordar que o governo Lula, no início do segundo mandato, realizou uma alteração política importante, deslocando sua base social de sustentação para as camadas mais pobres, que vivem à margem da organização de classe: depois de um completo fracasso do programa social Fome Zero, Lula ampliou o Bolsa-Família, política focalizada e assistencialista (mesmo que de grande amplitude), uma vez que atinge aproximadamente 13 milhões de famílias pobres (cerca de 50 milhões de pessoas com ingresso salarial baixo) e que por isso recebem em média o equivalente a 50 dólares mensais.
Desse modo, o governo Lula, como um Bonaparte, articulou as duas pontas da barbárie brasileira: seu governo remunerou como nenhum outro as diversas frações burguesas e, no extremo oposto da pirâmide social, onde encontramos os setores mais desorganizados e empobrecidos da população brasileira que dependem das doações do Estado para sobreviver, oferece uma política assistencial sem tocar sequer minimamente nenhum dos pilares estruturais da tragédia brasileira.
Distanciado de sua origem operária, submetido ao novo ethos da “classe média”, elevado aos degraus mais altos da escada social, tudo isso, foi convertendo Lula numa variante de “homem duplo”, exemplo daqueles que “vêm de baixo”, mas que triunfaram na ordem capitalista.
Seu governo demonstrou uma enorme competência em dividir os trabalhadores do setor privado em relação aos trabalhadores do setor público. Seu governo imaginou ser possível “humanizar” o capitalismo, combinando uma prática de privatização dos fundos públicos que atende tanto aos interesses do sindicalismo de negócios (interessado nos fundos de pensão), como ao sistema financeiro, que efetivamente domina a política econômica de seu governo.
No campo sindical, o chamado sindicalismo combativo foi solidamente cooptado pelo governo Lula. Recentemente, em 2008, o governo Lula tomou uma decisão que inclusive acentua o controle estatal dos sindicatos – velho traço do sindicalismo brasileiro – ao determinar que as centrais sindicais passassem a receber o Imposto Sindical, criado na Era Vargas no final dos anos 1930. Na recente medida aprovada pelo governo, ao mesmo tempo em que as centrais foram legalizadas (o que é positivo), elas passaram a ter o direito de recolher o Imposto Sindical. E vale recordar que a própria CUT surgiu contrária a este imposto. A Força Sindical, por outro lado, visto que nasceu como uma mescla de neopeleguismo e influência neoliberal, sempre foi favorável ao Imposto Sindical. Atualmente, ambas têm propostas e ações frequentemente muito semelhantes.
Sem mencionar o fato de que, durante o governo Lula (e agora Dilma), há centenas de ex-sindicalistas que recebem altos salários e comissões pela sua participação nos conselhos de empresas estatais, de ex-estatais (privatizadas), em conselhos de fundos de pensão, além de inumeráveis cargos ministeriais e comissões criadas pelo governo, aumentando a dependência, a maridagem e a cooptação de ex-líderes sindicais que se encontram dentro do aparelho de Estado.
Por isso, os governos Lula/Dilma, contam com o apoio de uma forte parcela da burocracia sindical que entrelaçou o Estado na dependência do dinheiro público e, desse modo, garante o apoio das cúpulas sindicais ao governo.
A CUT e a Força Sindical, inimigas no passado, convivem hoje nos mesmos ministérios do governo e vivem decisivamente na dependência dos orçamentos públicos.
O novo sindicalismo brasileiro dos anos 1970-1980, que nasceu fora dos marcos da socialdemocracia sindical, pouco a pouco se tornava uma espécie de cópia tardia daquela tendência sindical. Começava, então, a desmoronar o novo sindicalismo que agora parecia envelhecer precocemente. A política dos “convênios”, “apoios financeiros”, “associações” com a socialdemocracia sindical, especialmente europeia, levada a cabo por mais de duas décadas de forma intensa acabou, pouco a pouco, neste quadro de mudanças profundas, contaminando fortemente o sindicalismo de classe no Brasil que, desprovido de um perfil político e ideológico de classe, se foi socialdemocratizando, num contexto, vale recordar, de neoliberalização da própria socialdemocracia sindical.
Este processo terminou por metamorfosear a CUT, nascida com uma proposta independente e com claros contornos classistas, em uma Central sindical cada vez mais burocratizada, institucionalizada, negociadora, subordinada ao Estado.
Além da CUT, temos no campo de centro-esquerda, a Força Sindical, que combina elementos de neoliberalismo com o velho sindicalismo “pelego” que se “modernizou”, além de várias pequenas centrais, como a CGTB (Central Geral dos Trabalhadores do Brasil), a UGT (União Geral dos Trabalhadores) e a Nova Central. Com a crescente aproximação entre a CUT e a Força Sindical, se originou no Brasil uma curiosa variante de sindicalismo negociador de Estado que exercita a política de concertação com as empresas e se fia nos recursos estatais para garantir seu domínio e cooptação.
No campo da esquerda sindical tradicional, mesmo que assumindo uma posição de apoio ao governo Lula, temos a recém-formada CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil), que se originou na Corrente Sindical Classista, vinculada ao Partido Comunista do Brasil (partido que em seu passado esteve ligado à China e influenciado pelo maoísmo), que se desfiliou da CUT em 2007 para assim receber também o Imposto Sindical.
Como se pode ver, são inumeráveis os desafios que se apresentam para que possa ocorrer novamente uma reorganização do sindicalismo de base e de classe no Brasil, depois da derrota da CUT e do que se chamou de novo sindicalismo.
A crescente individualização das relações de trabalho, a tendência das empresas a buscar quebrar o espírito de solidariedade e consciência de classe e desorganizar ainda mais os trabalhadores dentro das fábricas, são desafios decisivos.
Combater a ideia falsa de que os trabalhadores não são mais operários, mas “colaboradores” – prática recorrente das empresas que pretendem dissimular a contradição existente entre a totalidade do trabalho social e a totalidade do capital, o que venho denominando de nova morfologia do trabalho –, é um imperativo fundamental neste processo de reorganização sindical.
Algumas experiências e desafios mais recentes do sindicalismo de classe
No campo da esquerda sindical anticapitalista, há um esforço para criar novos pólos de organização, resistência e confrontação, aglutinando os setores claramente socialistas e anticapitalistas junto à Conlutas (Coordenação Nacional de Lutas) e à Intersindical.
A Conlutas foi criada recentemente como embrião de uma nova central de trabalhadores, rompendo com a CUT e tendo como principal força política de apoio o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados), além de incorporar alguns setores do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e outros setores independentes.
A Conlutas se propõe a organizar não só os sindicatos, mas também os movimentos sociais extra-sindicais e cresceu em importância no último período, avançando na oposição ao governo Lula e agora ao governo Dilma. Lutando contra perdas de direitos e buscando organizar um amplo espaço de forças sociais do trabalho em um sentido amplo, que hoje está fora das organizações existentes.
A Intersindical é também oriunda dos setores críticos que romperam com a CUT, conta com boa presença de militantes sindicais do PSOL, ex-militantes do PT e outros setores independentes de esquerda.
A Intersindical tem um perfil mais acentuadamente sindical, voltando-se à reorganização do sindicalismo de classe. A Intersindical se encontra hoje dividida: uma parte está a favor da fusão com a Conlutas, criando então uma nova central; e outra parte é contrária à criação de uma nova central, optando por uma reorganização de base, de certo modo inspirado na experiência anterior das oposições sindicais.
Ambas, Conlutas e Intersindical, cada uma à sua maneira, buscam oferecer respostas em oposição à conversão da CUT em uma central institucionalizada, verticalizada e dependente do Estado.
Dois são emblemáticos. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e São José dos Campos (Conlutas) e o Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas (Intersindical). Eles rechaçam as políticas de concertação, recusam a prática nefasta do “banco de horas” (partilha do desemprego), realizam greves importantes e não aceitam o dinheiro público que subordina os sindicatos ao Estado.
A luta contra a destruição de direitos e a precarização do trabalho são centrais em suas ações cotidianas.
Veja-se os exemplos seguintes, que dão uma noção do nível de exploração do trabalho no Brasil. Na produção de cana-de-açúcar (etanol) os anos de vida dos trabalhadores, em algumas regiões do norte do país, são menores que nos tempos da escravidão, no século XIX, o que obriga os sindicatos rurais a lutar contra a degradação do trabalho semi-escravo no campo. Um trabalhador ou uma trabalhadora pode cortar em média entre 10 (São Paulo) e 18 (Maranhão) toneladas de cana por dia, dando milhares de faconadas, o que destrói seu corpo produtivo. Há inumeráveis casos de trabalho escravo em fazendas e no agronegócio, que tanto encanta o Lula.
Imigrantes bolivianos trabalham no ramo de confecções na indústria têxtil no centro de São Paulo. Têm jornadas que chegam a 17 horas por dia, completamente desprovidos de direitos.
São alguns exemplos. Então, como organizar esse conjunto ampliado, heterogêneo e disperso universo dos trabalhadores e trabalhadoras? É o maior desafio.
Além disso, é plenamente atual a luta pela autonomia, liberdade e independência sindical em relação às novas formas de dependência do Estado na Era Lula.
Outro desafio central é buscar a criação de um pólo sindical, social e político pela base, que procure oferecer ao país um programa de mudanças anticapitalistas, combatendo as causas reais e históricas que mantêm a estrutura social e política da dominação burguesa no Brasil.
É decisivo, portanto, buscar uma estrutura de organização sindical capaz de ampliar e intensificar as lutas sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, que elimine a superexploração do trabalho particularizado pelo capitalismo brasileiro, incentivando, ao contrário, as formas de produção voltadas às necessidades vitais da produção trabalhadora, à produção de bens socialmente úteis, oferecendo respostas concretas à tragédia que assola a vida cotidiana do ser social que trabalha no Brasil.
Compreender o desenho heterogêneo e multifacético que caracteriza a nova morfologia da classe trabalhadora se torna imprescindível, com o objetivo de eliminar a fratura que separa os trabalhadores e trabalhadoras estáveis e precários, homens e mulheres, jovens e velhos, nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e desqualificados, empregados e desempregados, entre tantas outras diferenciações.
Se a classe trabalhadora no mundo contemporâneo é mais complexa e heterogênea que aquela existente durante o período da expansão do fordismo, o resgate do sentido de pertença (Alain Bihr), contra as incontáveis fraturas objetivas e subjetivas impostas pelo capital, é um dos desafios mais urgentes. Isso, a nosso entender, só é possível partindo das questões vitais que emergem no espaço da vida cotidiana: trabalho, tempo de trabalho e de vida; degradação ambiental, produção destrutiva, propriedade (incluindo a intelectual), mercantilização de bens (água, alimentos), são alguns temas certamente vitais, que os sindicatos não podem deixar de considerar.
Romper a barreira imposta pelo capital, entre ação sindical e ação parlamentar, entre luta econômica e luta política, articulando e fundindo as lutas sociais, extra-parlamentares, autônomas, que dão vida às ações de classe, se torna crucial. Como o capital exerce um domínio fundamentalmente extra-parlamentar (István Mészaros), é um grande erro querer derrotá-lo com ações que se reduzem ou privilegiam o âmbito da institucionalidade. Um sindicalismo de classe deve, portanto, articular intimamente luta social e luta política.
Aqui, a experiência do MST. Criado em 1984, o MST tem como centro de sua ação a organização de base dos trabalhadores do campo. Em sua ação de enfrentamento, o MST não prioriza a ação institucional ou parlamentar (que é concebida como um desdobramento e não o centro de sua luta), mas que sustenta sua força e vitalidade na luta social pela base, tendo nas ocupações e assentamentos sua forma prioritária de luta.
Sua ação central parte de um elemento vital: a terra e sua posse como busca de um novo modo de vida, com claros elementos coletivos. A terra significa trabalho, vida, alimentação, sociabilidade, etc. O ponto de partida é uma questão vital.
Mesmo que o MST tenha sua origem nos trabalhadores rurais, foi incorporando crescentemente trabalhadores expulsos das cidades que retornam ao campo desempregados, articulando experiências cotidianas oriundas do mundo do trabalho rural e urbano.
Com esta força social, o MST é o mais importante movimento social e político do Brasil, ao praticar diariamente a fusão entre luta social e luta política como eixo central de suas ações.
Cito outro exemplo latino-americano. Na Argentina, vimos o florescimento, no marco da crise de dezembro de 2001, de novas formas de enfrentamento social, como a explosão do movimento dos trabalhadores desempregados, os piqueteiros que “fecham estradas” para impedir a circulação de mercadorias; ou como expressão da luta dos trabalhadores em torno das empresas “recuperadas”, ocupadas durante o período mais crítico da crise argentina, que chegaram a ser cerca de 200 empresas sob o controle-direção-autogestão dos trabalhadores.
Foram, ambas, respostas importantes frente ao desemprego e que assinalavam novas formas de lutas sociais e políticas do trabalho, impulsionadas pelas massas de desempregados que se expandiram naquele período, mesmo que, no caso dos piqueteiros, o movimento tenha sofrido um forte refluxo (e cooptação por parte do governo Kirchner), devido também à sua relativa atomização organizativa. E as fábricas ocupadas encontram um enorme obstáculo ao se relacionar com o mundo do mercado e sua lógica destrutiva. Mas, junto com os sindicatos de classe, foram experiências recentes de organização das forças sociais do trabalho.
Há, portanto, um desenho heterogêneo e multifacetado que caracteriza a nova morfologia do trabalho no Brasil. Para além das fraturas entre os trabalhadores estáveis e precários; de gênero, geracional e étnica; entre os trabalhadores qualificados e desqualificados, empregados e desempregados; além da necessidade imperiosa de superar o produtivismo em favor de uma concepção ambiental que articule ecologia e trabalho, temos ainda as estratificações e fragmentações que se acentuam em função do crescente processo de internacionalização do capital, entre tantos outros desafios.
Para compreender a nova morfologia do trabalho é preciso, então, partir de uma concepção ampliada de trabalho, que abarca a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho (incluindo também os desempregos) e que não se restrinja exclusivamente aos trabalhadores manuais diretos.
Os sindicatos e demais formas de representação das forças sociais do trabalho devem procurar compreender e incorporar a totalidade do trabalho social e coletivo que vende sua força de trabalho como mercadoria, seja esse trabalho predominantemente material ou imaterial, nas tecnologias de informação e comunicação – o chamado infoproletariado ou cyberproletariado que tem papel de destaque na criação de valor hoje –, seja aquele enorme contingente sobrante de fora do trabalho que não encontra emprego, os desempregados, mas que são parte constitutiva da classe trabalhadora (e também da lei do valor).
Se a indústria taylorista e fordista é, enquanto tendência, mais parte do passado que do presente, como imaginar que um sindicalismo organizado verticalmente possa representar esse novo heterogêneo mundo do trabalho?
É preciso desenhar um sindicalismo horizontal (Alain Bihr) que contemple as múltiplas formas de ser do trabalho. Dito de outra maneira, a nova morfologia do trabalho obriga a repensar uma nova morfologia dos organismos de representação do trabalho, da qual os sindicatos são parte.
Mas, assim como a passagem do século XIX para o século XX gerou a criação de um novo tipo de sindicalismo de massa taylorista-fordista, a virada do século XX para o XXI está exigindo um novo sindicalismo de classe que aglutine a classe-que-vive-do-trabalho e sua nova morfologia.
ihu.unisinos
Artigo de Ricardo Antunes
“O governo Lula, como um Bonaparte, articulou as duas pontas da barbárie brasileira: seu governo remunerou como nenhum outro as diversas frações burguesas e, no extremo oposto da pirâmide social, onde encontramos os setores mais desorganizados e empobrecidos da população brasileira que dependem das doações do Estado para sobreviver, oferece uma política assistencial sem tocar sequer minimamente nenhum dos pilares estruturais da tragédia brasileira”, escreve Ricardo Antunes em artigo publicado no sítio espanhol Rebelión, 14-02-2011. A tradução é do Cepat.
Ricardo Antunes é professor titular de Sociologia do Trabalho no IFCH/UNICAMP e autor de vários livros. Destacamos alguns: Adeus ao Trabalho? (Cortez), Os sentidos do trabalho (Boitempo), A rebeldia do trabalho (Ed. Unicamp) e O caracol e sua concha: ensaios sobre a nova morfologia do trabalho (Boitempo).
Eis o artigo.
No contexto de uma monumental reorganização – econômica, social, política, ideológica e valorativa – do capital, como o sindicalismo de classe vem esboçando suas respostas?
No caso do Brasil, onde na década de 1980 aflorou um novo sindicalismo com claro perfil de classe, que mudanças vem sofrendo ao longo desse período de desertificação neoliberal? O que aconteceu na última década no cenário sindical? Quais são as experiências e as possibilidades de um sindicalismo de classe depois de oito anos de governo sócio-liberal de Lula?
O mais destacado líder sindical do chamado novo sindicalismo se converteu em um novo instrumento das classes dominantes, uma variante de semi-bonapartismo, onde o controle e a cooptação do chamado sindicalismo combativo (e em particular da cúpula sindical) eram decisivos.
Vale recordar que o governo Lula, no início do segundo mandato, realizou uma alteração política importante, deslocando sua base social de sustentação para as camadas mais pobres, que vivem à margem da organização de classe: depois de um completo fracasso do programa social Fome Zero, Lula ampliou o Bolsa-Família, política focalizada e assistencialista (mesmo que de grande amplitude), uma vez que atinge aproximadamente 13 milhões de famílias pobres (cerca de 50 milhões de pessoas com ingresso salarial baixo) e que por isso recebem em média o equivalente a 50 dólares mensais.
Desse modo, o governo Lula, como um Bonaparte, articulou as duas pontas da barbárie brasileira: seu governo remunerou como nenhum outro as diversas frações burguesas e, no extremo oposto da pirâmide social, onde encontramos os setores mais desorganizados e empobrecidos da população brasileira que dependem das doações do Estado para sobreviver, oferece uma política assistencial sem tocar sequer minimamente nenhum dos pilares estruturais da tragédia brasileira.
Distanciado de sua origem operária, submetido ao novo ethos da “classe média”, elevado aos degraus mais altos da escada social, tudo isso, foi convertendo Lula numa variante de “homem duplo”, exemplo daqueles que “vêm de baixo”, mas que triunfaram na ordem capitalista.
Seu governo demonstrou uma enorme competência em dividir os trabalhadores do setor privado em relação aos trabalhadores do setor público. Seu governo imaginou ser possível “humanizar” o capitalismo, combinando uma prática de privatização dos fundos públicos que atende tanto aos interesses do sindicalismo de negócios (interessado nos fundos de pensão), como ao sistema financeiro, que efetivamente domina a política econômica de seu governo.
No campo sindical, o chamado sindicalismo combativo foi solidamente cooptado pelo governo Lula. Recentemente, em 2008, o governo Lula tomou uma decisão que inclusive acentua o controle estatal dos sindicatos – velho traço do sindicalismo brasileiro – ao determinar que as centrais sindicais passassem a receber o Imposto Sindical, criado na Era Vargas no final dos anos 1930. Na recente medida aprovada pelo governo, ao mesmo tempo em que as centrais foram legalizadas (o que é positivo), elas passaram a ter o direito de recolher o Imposto Sindical. E vale recordar que a própria CUT surgiu contrária a este imposto. A Força Sindical, por outro lado, visto que nasceu como uma mescla de neopeleguismo e influência neoliberal, sempre foi favorável ao Imposto Sindical. Atualmente, ambas têm propostas e ações frequentemente muito semelhantes.
Sem mencionar o fato de que, durante o governo Lula (e agora Dilma), há centenas de ex-sindicalistas que recebem altos salários e comissões pela sua participação nos conselhos de empresas estatais, de ex-estatais (privatizadas), em conselhos de fundos de pensão, além de inumeráveis cargos ministeriais e comissões criadas pelo governo, aumentando a dependência, a maridagem e a cooptação de ex-líderes sindicais que se encontram dentro do aparelho de Estado.
Por isso, os governos Lula/Dilma, contam com o apoio de uma forte parcela da burocracia sindical que entrelaçou o Estado na dependência do dinheiro público e, desse modo, garante o apoio das cúpulas sindicais ao governo.
A CUT e a Força Sindical, inimigas no passado, convivem hoje nos mesmos ministérios do governo e vivem decisivamente na dependência dos orçamentos públicos.
O novo sindicalismo brasileiro dos anos 1970-1980, que nasceu fora dos marcos da socialdemocracia sindical, pouco a pouco se tornava uma espécie de cópia tardia daquela tendência sindical. Começava, então, a desmoronar o novo sindicalismo que agora parecia envelhecer precocemente. A política dos “convênios”, “apoios financeiros”, “associações” com a socialdemocracia sindical, especialmente europeia, levada a cabo por mais de duas décadas de forma intensa acabou, pouco a pouco, neste quadro de mudanças profundas, contaminando fortemente o sindicalismo de classe no Brasil que, desprovido de um perfil político e ideológico de classe, se foi socialdemocratizando, num contexto, vale recordar, de neoliberalização da própria socialdemocracia sindical.
Este processo terminou por metamorfosear a CUT, nascida com uma proposta independente e com claros contornos classistas, em uma Central sindical cada vez mais burocratizada, institucionalizada, negociadora, subordinada ao Estado.
Além da CUT, temos no campo de centro-esquerda, a Força Sindical, que combina elementos de neoliberalismo com o velho sindicalismo “pelego” que se “modernizou”, além de várias pequenas centrais, como a CGTB (Central Geral dos Trabalhadores do Brasil), a UGT (União Geral dos Trabalhadores) e a Nova Central. Com a crescente aproximação entre a CUT e a Força Sindical, se originou no Brasil uma curiosa variante de sindicalismo negociador de Estado que exercita a política de concertação com as empresas e se fia nos recursos estatais para garantir seu domínio e cooptação.
No campo da esquerda sindical tradicional, mesmo que assumindo uma posição de apoio ao governo Lula, temos a recém-formada CTB (Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil), que se originou na Corrente Sindical Classista, vinculada ao Partido Comunista do Brasil (partido que em seu passado esteve ligado à China e influenciado pelo maoísmo), que se desfiliou da CUT em 2007 para assim receber também o Imposto Sindical.
Como se pode ver, são inumeráveis os desafios que se apresentam para que possa ocorrer novamente uma reorganização do sindicalismo de base e de classe no Brasil, depois da derrota da CUT e do que se chamou de novo sindicalismo.
A crescente individualização das relações de trabalho, a tendência das empresas a buscar quebrar o espírito de solidariedade e consciência de classe e desorganizar ainda mais os trabalhadores dentro das fábricas, são desafios decisivos.
Combater a ideia falsa de que os trabalhadores não são mais operários, mas “colaboradores” – prática recorrente das empresas que pretendem dissimular a contradição existente entre a totalidade do trabalho social e a totalidade do capital, o que venho denominando de nova morfologia do trabalho –, é um imperativo fundamental neste processo de reorganização sindical.
Algumas experiências e desafios mais recentes do sindicalismo de classe
No campo da esquerda sindical anticapitalista, há um esforço para criar novos pólos de organização, resistência e confrontação, aglutinando os setores claramente socialistas e anticapitalistas junto à Conlutas (Coordenação Nacional de Lutas) e à Intersindical.
A Conlutas foi criada recentemente como embrião de uma nova central de trabalhadores, rompendo com a CUT e tendo como principal força política de apoio o PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados), além de incorporar alguns setores do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e outros setores independentes.
A Conlutas se propõe a organizar não só os sindicatos, mas também os movimentos sociais extra-sindicais e cresceu em importância no último período, avançando na oposição ao governo Lula e agora ao governo Dilma. Lutando contra perdas de direitos e buscando organizar um amplo espaço de forças sociais do trabalho em um sentido amplo, que hoje está fora das organizações existentes.
A Intersindical é também oriunda dos setores críticos que romperam com a CUT, conta com boa presença de militantes sindicais do PSOL, ex-militantes do PT e outros setores independentes de esquerda.
A Intersindical tem um perfil mais acentuadamente sindical, voltando-se à reorganização do sindicalismo de classe. A Intersindical se encontra hoje dividida: uma parte está a favor da fusão com a Conlutas, criando então uma nova central; e outra parte é contrária à criação de uma nova central, optando por uma reorganização de base, de certo modo inspirado na experiência anterior das oposições sindicais.
Ambas, Conlutas e Intersindical, cada uma à sua maneira, buscam oferecer respostas em oposição à conversão da CUT em uma central institucionalizada, verticalizada e dependente do Estado.
Dois são emblemáticos. O Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e São José dos Campos (Conlutas) e o Sindicato dos Metalúrgicos de Campinas (Intersindical). Eles rechaçam as políticas de concertação, recusam a prática nefasta do “banco de horas” (partilha do desemprego), realizam greves importantes e não aceitam o dinheiro público que subordina os sindicatos ao Estado.
A luta contra a destruição de direitos e a precarização do trabalho são centrais em suas ações cotidianas.
Veja-se os exemplos seguintes, que dão uma noção do nível de exploração do trabalho no Brasil. Na produção de cana-de-açúcar (etanol) os anos de vida dos trabalhadores, em algumas regiões do norte do país, são menores que nos tempos da escravidão, no século XIX, o que obriga os sindicatos rurais a lutar contra a degradação do trabalho semi-escravo no campo. Um trabalhador ou uma trabalhadora pode cortar em média entre 10 (São Paulo) e 18 (Maranhão) toneladas de cana por dia, dando milhares de faconadas, o que destrói seu corpo produtivo. Há inumeráveis casos de trabalho escravo em fazendas e no agronegócio, que tanto encanta o Lula.
Imigrantes bolivianos trabalham no ramo de confecções na indústria têxtil no centro de São Paulo. Têm jornadas que chegam a 17 horas por dia, completamente desprovidos de direitos.
São alguns exemplos. Então, como organizar esse conjunto ampliado, heterogêneo e disperso universo dos trabalhadores e trabalhadoras? É o maior desafio.
Além disso, é plenamente atual a luta pela autonomia, liberdade e independência sindical em relação às novas formas de dependência do Estado na Era Lula.
Outro desafio central é buscar a criação de um pólo sindical, social e político pela base, que procure oferecer ao país um programa de mudanças anticapitalistas, combatendo as causas reais e históricas que mantêm a estrutura social e política da dominação burguesa no Brasil.
É decisivo, portanto, buscar uma estrutura de organização sindical capaz de ampliar e intensificar as lutas sociais dos trabalhadores urbanos e rurais, que elimine a superexploração do trabalho particularizado pelo capitalismo brasileiro, incentivando, ao contrário, as formas de produção voltadas às necessidades vitais da produção trabalhadora, à produção de bens socialmente úteis, oferecendo respostas concretas à tragédia que assola a vida cotidiana do ser social que trabalha no Brasil.
Compreender o desenho heterogêneo e multifacético que caracteriza a nova morfologia da classe trabalhadora se torna imprescindível, com o objetivo de eliminar a fratura que separa os trabalhadores e trabalhadoras estáveis e precários, homens e mulheres, jovens e velhos, nacionais e imigrantes, brancos e negros, qualificados e desqualificados, empregados e desempregados, entre tantas outras diferenciações.
Se a classe trabalhadora no mundo contemporâneo é mais complexa e heterogênea que aquela existente durante o período da expansão do fordismo, o resgate do sentido de pertença (Alain Bihr), contra as incontáveis fraturas objetivas e subjetivas impostas pelo capital, é um dos desafios mais urgentes. Isso, a nosso entender, só é possível partindo das questões vitais que emergem no espaço da vida cotidiana: trabalho, tempo de trabalho e de vida; degradação ambiental, produção destrutiva, propriedade (incluindo a intelectual), mercantilização de bens (água, alimentos), são alguns temas certamente vitais, que os sindicatos não podem deixar de considerar.
Romper a barreira imposta pelo capital, entre ação sindical e ação parlamentar, entre luta econômica e luta política, articulando e fundindo as lutas sociais, extra-parlamentares, autônomas, que dão vida às ações de classe, se torna crucial. Como o capital exerce um domínio fundamentalmente extra-parlamentar (István Mészaros), é um grande erro querer derrotá-lo com ações que se reduzem ou privilegiam o âmbito da institucionalidade. Um sindicalismo de classe deve, portanto, articular intimamente luta social e luta política.
Aqui, a experiência do MST. Criado em 1984, o MST tem como centro de sua ação a organização de base dos trabalhadores do campo. Em sua ação de enfrentamento, o MST não prioriza a ação institucional ou parlamentar (que é concebida como um desdobramento e não o centro de sua luta), mas que sustenta sua força e vitalidade na luta social pela base, tendo nas ocupações e assentamentos sua forma prioritária de luta.
Sua ação central parte de um elemento vital: a terra e sua posse como busca de um novo modo de vida, com claros elementos coletivos. A terra significa trabalho, vida, alimentação, sociabilidade, etc. O ponto de partida é uma questão vital.
Mesmo que o MST tenha sua origem nos trabalhadores rurais, foi incorporando crescentemente trabalhadores expulsos das cidades que retornam ao campo desempregados, articulando experiências cotidianas oriundas do mundo do trabalho rural e urbano.
Com esta força social, o MST é o mais importante movimento social e político do Brasil, ao praticar diariamente a fusão entre luta social e luta política como eixo central de suas ações.
Cito outro exemplo latino-americano. Na Argentina, vimos o florescimento, no marco da crise de dezembro de 2001, de novas formas de enfrentamento social, como a explosão do movimento dos trabalhadores desempregados, os piqueteiros que “fecham estradas” para impedir a circulação de mercadorias; ou como expressão da luta dos trabalhadores em torno das empresas “recuperadas”, ocupadas durante o período mais crítico da crise argentina, que chegaram a ser cerca de 200 empresas sob o controle-direção-autogestão dos trabalhadores.
Foram, ambas, respostas importantes frente ao desemprego e que assinalavam novas formas de lutas sociais e políticas do trabalho, impulsionadas pelas massas de desempregados que se expandiram naquele período, mesmo que, no caso dos piqueteiros, o movimento tenha sofrido um forte refluxo (e cooptação por parte do governo Kirchner), devido também à sua relativa atomização organizativa. E as fábricas ocupadas encontram um enorme obstáculo ao se relacionar com o mundo do mercado e sua lógica destrutiva. Mas, junto com os sindicatos de classe, foram experiências recentes de organização das forças sociais do trabalho.
Há, portanto, um desenho heterogêneo e multifacetado que caracteriza a nova morfologia do trabalho no Brasil. Para além das fraturas entre os trabalhadores estáveis e precários; de gênero, geracional e étnica; entre os trabalhadores qualificados e desqualificados, empregados e desempregados; além da necessidade imperiosa de superar o produtivismo em favor de uma concepção ambiental que articule ecologia e trabalho, temos ainda as estratificações e fragmentações que se acentuam em função do crescente processo de internacionalização do capital, entre tantos outros desafios.
Para compreender a nova morfologia do trabalho é preciso, então, partir de uma concepção ampliada de trabalho, que abarca a totalidade dos assalariados, homens e mulheres que vivem da venda de sua força de trabalho (incluindo também os desempregos) e que não se restrinja exclusivamente aos trabalhadores manuais diretos.
Os sindicatos e demais formas de representação das forças sociais do trabalho devem procurar compreender e incorporar a totalidade do trabalho social e coletivo que vende sua força de trabalho como mercadoria, seja esse trabalho predominantemente material ou imaterial, nas tecnologias de informação e comunicação – o chamado infoproletariado ou cyberproletariado que tem papel de destaque na criação de valor hoje –, seja aquele enorme contingente sobrante de fora do trabalho que não encontra emprego, os desempregados, mas que são parte constitutiva da classe trabalhadora (e também da lei do valor).
Se a indústria taylorista e fordista é, enquanto tendência, mais parte do passado que do presente, como imaginar que um sindicalismo organizado verticalmente possa representar esse novo heterogêneo mundo do trabalho?
É preciso desenhar um sindicalismo horizontal (Alain Bihr) que contemple as múltiplas formas de ser do trabalho. Dito de outra maneira, a nova morfologia do trabalho obriga a repensar uma nova morfologia dos organismos de representação do trabalho, da qual os sindicatos são parte.
Mas, assim como a passagem do século XIX para o século XX gerou a criação de um novo tipo de sindicalismo de massa taylorista-fordista, a virada do século XX para o XXI está exigindo um novo sindicalismo de classe que aglutine a classe-que-vive-do-trabalho e sua nova morfologia.
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