Ivana Bentes: A vanguarda da retaguarda reage
ViomundoA Esquerda nos Eixos e o novo ativismo
Ivana Bentes, no Trezentos, via Nassif
Pretendia escrever um texto de avaliação sobre as Marchas da Liberdade em todo Brasil quando vi este artigo na rede ["A esquerda fora do eixo, publicado dia 17 de Junho de 2011 no site Passa a Palavra com assinatura coletiva http://passapalavra.info/?p=41221] sintomático da perplexidade de certos setores da esquerda tradicional com as mudanças e crise do capitalismo fordista e as novas dinâmicas de resistência e criação dentro do chamado capitalismo cognitivo (pós-fordista, da informação ou cultural).
Crise e desestruturação que tem como horizonte a universalização dos meios de produção e infra-estrutura pública instalada, a constituição de novos circuitos e mercados e a emergência de uma intelectualidade de massa (não mais o “proletariado”, mas o cognitariado) com a possibilidade da apropriação tecnológica por diferentes grupo (software livre, códigos abertos, cultura digital).
Crise e paradoxo onde o próprio crescimento gera e multiplica precariedade, mas também novas dinâmicas e modelos.
O capitalismo da “abundância” produz crise ao entrar no horizonte da gratuidade/compartilhamento/colaboração com uma mutação da própria idéia de “propriedade” (ver a crise do Direito Autoral).
O texto percebe as mudanças, estruturais, mas não consegue ir além nas conseqüências e funciona como uma caricatura que busca demonizar as novas dinâmicas sociais e culturais pós-fordistas e despotencializar a cultura digital, o midiativismo e as estratégias de apropriação tecnológicas das redes, inclusive a apropriação de ferramentas como o Facebook, twitter e outras para causas e objetivos próprios, como fizeram os árabes e os espanhóis, hackeando as novas corporações pós-fordistas.
Falta ao texto (além de diagnósticos equivocados sobre a “nova classe dominante”) um arsenal teórico minimamente a altura das mutações, crises e impasses do próprio capitalismo.
Há uma frase sintomática neste artigo que me chamou atenção e que esclarece em muito sobre “quem” fala e de “onde” fala sob a assinatura anônima/coletiva:
Diz: “é praticamente impossível para um observador desatento ou viciado nas velhas estruturas identificar e combater o novo sujeito formado por este coletivo (ou rede).”, referindo-se ao Circuito Fora do Eixo a quem os autores atribuem — numa teoria “conspiratória” que não esconde uma envergonhada admiração — praticamente tudo o que está acontecendo de mais interessante na cena do ativismo brasileiro!
A frase explicita o medo diante das novas dinâmicas que estão sendo inventadas e experimentadas “fora do eixo” da esquerda clássica, criando experiências e conceitos que explodem o arsenal de teorias maniqueístas fordistas de uma esquerda pautada pelo capitalismo do século XX, incapaz de enxergar as “revoluções do capitalismo”, dentro “do” capitalismo e que vem sendo discutidas pelo menos desde maio de 68 ou logo depois quando, por exemplo, os teóricos-ativistas Gilles Deleuze e Félix Guattari lançaram o extraordinário manifesto “O Anti-Édipo ou Capitalismo e Esquizofrenia”, de 1972. Ou que ignora as análises sobre as mutações do capitalismo tematizadas por um teórico comunista como Antonio Negri, nos livros “Império” e “Multidão”, dois clássicos contemporâneos.
A frase dá bem a dimensão desse medo e incompreensão do novo e aponta a própria incapacidade de ver dos autores do artigo.
O observador “viciado nas velhas estruturas” é exatamente “quem fala” neste texto, que também se entrega, medroso e preocupado, com a perda do seu próprio protagonismo. Perda de toda uma esquerda fordista que funciona hoje como a “vanguarda da retaguarda” mais conservadora até que muitas dinâmicas do próprio mercado!
Entre os problemas mais gritantes destaco:
1. O texto não consegue configurar que os movimentos e articulações, ainda que incipientes, das marchas das liberdades em todo Brasil não são “a nova classe dominante”, mas a emergência de um movimento transversal, “movimento de movimentos”, com dinâmica própria e singular em cada território, com uma pauta heterogênea, aberta e em construção, sem “central única” ou “comando” dos “iluminados”, que se auto-organiza e cujos “fins” não foram dados a priori!
2. Não se trata de uma “nova classe média liberal”, nem “nova classe dominante”, “despolitizada”, mas de um arranjo transversal que junta e agrega o chamado precariado urbano, a nova força de transformação no capitalismo contemporâneo.
3. Ou seja, movimentos como os das marchas (e tantos outros) ou o Circuito Fora do Eixo são a base de um novo ativismo contemporâneo, a da emergência do precariado cognitivo, ou cultural, ou seja, da explosão e da percepção que o sistema trabalhista fordista e previdenciário clássicos não dão mais contas da dinâmica de ocupações ‘livres’ (mesmo que frágeis e sem segurança) no capitalismo da informação. E que essa precariedade e autonomia não significa apenas “vitimizar” e “assujeitar” é uma potência para novos arranjos, alianças e lutas.
4. O Circuito Fora do Eixo é, no meu entender, um dos mais potentes laboratórios de experimentações das novas dinâmicas do trabalho e das subjetividades. Que tem como base: autonomia, liberdade e um novo “comunismo” (construção de Comum, comunidade, caixas coletivos, moedas coletivas, redes integradas, economia viva e mercados solidários).
Estão FORA do eixo/fetiche da esquerda por trabalhadores assujeitados na relação patrão/empregado! Mas tem enorme potência para articularem não apenas a classe média urbana, mas se articularem com os pobres e precários das periferias e favelas, ao se conectarem com outras redes como a da CUFA e outras, que junta os jovens negros e pobres para outras marchas como a do Direito a Moradia, em preparação. Além de outras articulações sem medo de “aparelhamentos” seja das corporações, dos partidos, ou do Estado. Sem demonizar as relações com os mercados, mas inventando e pautando, “criando” outros mercados, fora da lógica fordista do assujeitamento.
5. Ou seja, o Fora do Eixo entendeu que o modelo na produção cultural é o modelo de funcionamento do próprio capitalismo.
Não mais o capitalismo fordista da “carteira assinada” mas o dos zilhões de free-lancers, autônomos, diplomados sem empregos, sub-empregados, camelôs, favelados, contratados temporários, designes, artistas, atores, técnicos, que ou “vendem” sua força livre de trabalho com atividades flutuantes temporárias, ou se ORGANIZAM e INVENTAM o próprio emprego/ocupação e novos circuitos, como tem feito de forma incrivelmente bem sucedida o Circuito Fora do Eixo, resignificando e potencializando o imaginário de jovens no Brasil inteiro.
Uma esquerda pós-fordista que está dando certo, que inventa estratégias de Mídia, que inventa “mercados” solidários, contrariando os anunciadores do apocalipse.
6. A ideia de que, para se ter “direitos”, é preciso se “assujeitar” em uma relação de patrão/empregado, de “assalariamento”, é uma ideia francamente conservadora. O precariado cognitivo, os jovens precários das economias da cultura estão reinventando as relações de trabalho; os desafios são enormes, a economia pós-Google não é fordista, não é melhor nem pior que as velhas corporações, mas abre para outras dinâmicas e estratégias de luta, EM DISPUTA!
Não vamos combater as novas assimetrias e desigualdades com discursos e instrumentos da revolução industrial!!! Como faz o texto na sua argumentação redutora e tendenciosa.
Não é só o capitalismo financeiro que funciona em fluxo e em rede, veloz e dinâmico. As novas lutas e resistências passam por essas mesmas estratégias.
O Fora do Eixo está apontando para as novas formas de lutas, novas estratégias e ferramentas, que inclui inclusive PAUTAR AS POLITICA PUBLICAS, PAUTAR o Parlamento, PAUTAR A MIDIA, Pautar a Globo, como as marchas conseguiram fazer! Ser bem sucedido ai, onde muitos fracassaram, é o que parece imperdoável!
Há um enorme ressentimento no texto, mal disfarçado, diante de tanta potência, lida pela chave mesquinha da “luta por poder”, “captalização de prestígio”, da “nova classe dominante”. O objetivo infelizmente parece ser o de desqualificar, rotular e “neutralizar” os que são os novos aliados de uma radicalização do processo democrático no Brasil, que estão inovando na linguagem e nas estratégias. “Perigo” que ameaça a jovem/velha esquerda, que perde protagonismo em todas as esferas, incapaz de dialogar com esse novo e complexo cenário, com todos os seus riscos. Experimentar = se expor aos riscos.
7. Como dizem os ativistas italianos: “Odeia a Mídia? Torne-se Mídia”. A velha esquerda foi incapaz de fazer frente as velhas corporações, perdeu para a mídia de massas, conseguiu pautar algumas politicas públicas, mas está francamente perdida no capitalismo dos fluxos e das redes. Não sabe como resistir, nem inovar, nem experimentar, nem ousar. Está tristemente na retaguarda do próprio mercado!!!
8. O artigo parece ter como horizonte a luta por cartórios do século XIX!!! Com estratégias e palavras de ordem abstratas, um “anticapitalismo” vago que perdeu o sentido. Pois as novas lutas são em FLUXO, são modulações, não são MOLDES PRE-FABRICADOS, não são sequer anti-capitalistas, no sentido estrito, pois estão hackeando o capitalismo, se apropriando de suas estratégias para resignificar o COMUNISMO das redes, no sentido mais radical de um comunismo DENTRO do próprio capitalismo, esquizofrenia do sistema que produz hoje um horizonte do COMUM, que temos que construir e pelo que temos que lutar.
9. É preciso dizer ainda que “não existe UM outro mundo”, não existe “fora do capitalismo” (como diz Guattari e Negri) só existe esse mundo aqui, em processo, mutante, imanência radical, e é deste mundo aqui (um rio que vem de longe…) que iremos inventar outros tantos mundos, no plural.
10. O Fora do Eixo, nas suas práticas de criação de comum e comunidades (que o texto detecta mas distorce) e politização do cotidiano, não é o “inimigo” a combater, estão forjando as novas armas para os movimentos em fluxo, então criando redes, fazendo midiativismo, estão relendo e re-inventando, de forma empírica e genial, dinâmicas e processos decisivos dos embates políticos: situacionismo, Maio de 68, experiências de Seatle, hackerativismo, cultura livre, estão na deriva e na luta. A “geração em rede” não mascara nenhum tipo de “conteúdo político oculto e perigoso” que precisa ser desmascarado, ela é o novo conteúdo e linguagem política, ela encarna as novas lutas e está inventando futuros alternativos.
Leia o que Fátima Oliveira escreveu sobre a Marcha das Vadias
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